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A Retórica do Sonho

Hayao Miyazaki homenageia o engenheiro aeronáutico Jiro Horikoshi em Vidas ao Vento, um manifesto sobre a derrocada dos sonhos



Nascido em 1903, o engenheiro japonês Jiro Horikoshi (1903-1982) sempre sonhou em navegar pelos ares. Quando a miopia comprometeu o ímpeto de se tornar um grande aviador, ele transferiu a sua paixão para um campo primordial aos pilotos, sem o qual seria impossível domar o que se esconde atrás das nuvens: a engenharia aeronáutica.


Mestre na composição de verdadeiras pinturas em movimento, o diretor japonês Hayao Miyazaki - presidente do estúdio de animações, o Studio Ghibli - tem o longa-metragem biográfico Vidas Ao Vento (Kaze Tachinu, 2013) como um marco em sua carreira, no qual reinventa a sua capacidade de equilibrar a atmosfera destruidora da guerra e a inocência de figuras impulsionadas por sua crença nas capacidades humanas.


Ambientado em um Japão carcomido pelo término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e igualmente sufocado pela iminência de um próximo conflito global, tem-se um filme que versa sobre a destruição do sonho, sem nunca ocultar um desfecho fadado a chegar. É como se a direção esculpísse a sensação de se perceber dentro de um sonho cujas paredes se tornam porosas e tudo entra em colisão; como a queda alucinada de um protótipo de avião.


A trajetória de Jiro manifesta um dilema interessante: um criador que não consegue conceber outro caminho profissional, mas que acaba consumido pela própria criação, uma farsa que nunca se transmuta no ar, criada para um propósito e corrompida pelas necessidades da guerra. Não que esse estado configure uma densidade presente, visto que a pureza ainda se escora por esse mundo sombrio. Exemplo disso está na relação entre o engenheiro e sua amada Naoko Satomi, cuja condução em trama permite que o filme até abandone alguns de seus focos narrativos.


A longa passagem em que o casal se comunica pela inocência de um aviãozinho de papel, por exemplo, configura um núcleo despreocupado com um avanço lógico e convencional da narrativa. É um momento em que Miyazaki autoriza a exploração mais espontânea das pulsões que percorrem os pombinhos apaixonados, percorridos por um sentimento incapaz de ser posto em imagens concretas.


A dinâmica entre as passagens mais ingênuas e os momentos mais aterradores estabelece uma dualidade interessante entre imagem e sensação, presente na maneira como rompe a concretude de seus cenários com as pinturas - inseridas como elemento diegético pelos quadros de Sahoko. Além de demonstrar um amadurecimento particular na forma como o cineasta domina a forma.



Tudo não passa de uma bomba relógio, um universo que se reconstitui concretamente a cada quadro, a cada pincelada de traços 2D, como o tal avião fenomênico que está prestes a explodir em pleno ar. Sejam as potências entre o casal principal, os sonhos impossíveis ou a mera natureza do longa, tudo se transforma em vento: partículas literais e figuradas que acompanham o trânsito de criações perambulando entre o literal e o subjetivo.


Exemplo disso está nas fusões entre sonho e paisagem; nas máscaras que rompem com um realismo presente em demais projetos do estúdio - não na criação mitológica mas na maneira como as personagens se comportam dentro dos espaços; e na maneira como esse fluxo unifica duas personagens. O renomado diretor japonês olha para a sua própria trajetória, questionando as simbologias erguidas por seu legado e o peso final deles: do que adianta capturar, representar a realidade se ela deixa de existir no instante do registro?


Vidas ao Vento talvez peque pela dubiedade tonal de seu desfecho: leve, mas ainda apresentando uma seriedade impressionante na mistura da inutilidade da guerra com as razões finais de certos objetivos e o uso de determinados signos como propulsão. Poderia retocar apenas a duração do plano final, um campo vazio, que merecia perdurar por mais vários segundos em tela. Ali se desfazem sonhos, maldições e impossibilidades, inexistências de um tempo que já foi e muito levou, por mais científicas que sejam as explicações para a sua existência. Resta, ao final, o sentimento, suspenso, onde nada além da memória permanece.



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