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As cartas e as trocas


[...] quando algo dá certo para mim, não sei a quem devo agradecer; quando as mais bonitas esperanças se tornam água, não sei quem quis que assim fosse, e quando quero ter algo, não sei para quem rezar (KAPPUS a RILKE, 28 de novembro de 1903)


No meu 23º aniversário, minha mãe me presenteou com o livro Cartas a um Jovem Poeta (1929), de Rainer Maria Rilke (1875-1926), escritor austríaco da virada do século 19 para o 20. Fui apresentada a uma coletânea de correspondências trocadas durante um período de cinco anos. O interlocutor (o jovem poeta) é Franz Xaver Kappus (1883-1966), um militar de 19 anos – sensível, inseguro e cheio de perguntas. O jovem inicia o contato e escreve pela primeira vez em fevereiro de 1903 – essa carta, porém, não foi preservada. A partir disso, ambos se conectam e se escrevem com uma frequência moderada em cartas que, pela datação, demoram a chegar e geram expectativa, mas não falham na identificação, sinceridade e generosidade.


Desde então, tenho pensado muito sobre a importância dessa e de tantas outras correspondências do mesmo tipo, no qual se busca no outro a identificação sem pedir nada além de um espaço para o desabafo. Às vezes o artista pode se sentir sozinho em um vácuo gigantesco onde ninguém o entende ou quer saber das coisas que tem para falar. Então achei interessante a ideia de escrever sobre a falta que faz não ter com quem conversar sobre aquilo que nos move.


Faz tão bem a mim, prezadíssimo senhor, poder ser tão sincero diante do senhor – apenas como ser humano –, conseguir e poder falar abertamente, sem temer que, com a mais insignificante de minhas palavras, diante de sua consideração e de seu amor ilimitados eu seja mandado embora e depois tenha que errar por aí, sem pátria (KAPPUS a RILKE, 28 de novembro de 1903)


(Já faz tempo que não temos mais o costume de escrever cartas, lógico, então aqui vamos comparar cartas antigas com diálogos situados no ambiente digital.)


Moça lendo uma carta à janela (1657-1659), de Johannes Vermeer. Acervo: Staatliche Kunstsammlungen Dresden. (Reprodução: Hans Peter Klut / Elke Estel)


O que é uma carta? Normalmente escrita à mão, as cartas, muito antes do telefone, e-mail ou WhatsApp, eram a forma de se comunicar (de maneira privada) com o outro. Ali, escrevia-se o mundo. Tudo era possível, desde que riscado no papel. 


Correspondência: Ato, processo ou efeito de corresponder-se, de apresentar ou estabelecer reciprocidade. A correspondência neste formato de carta não existe mais; o que existe são trocas em espaços digitais – a identificação gerada pela conexão entre pessoas. As redes sociais são uma oportunidade de se criar comunidades, que nada mais são do que trocas. Mas até que ponto essas conexões são reais ou profundas o suficiente?


Em Cartas a Theo (1914), nos deparamos com um Vincent Van Gogh (1853-1890) tortuoso e solitário. O pintor holandês se encontra em eterna estagnação na carreira, tendo apenas um quadro vendido ao longo da vida. Suas quase 900 pinturas só receberam atenção no início do século 20, vinte anos após sua morte.


Cerca de 750 cartas foram trocadas entre Vincent e seu irmão mais novo, Theodorus (1857-1891), dividindo acontecimentos do cotidiano, paisagens de viagens e estadias, e principalmente opiniões sobre a vida, a arte, criatividade e o fazer artístico. Sendo compreendido ou não por Theo (um negociante de obras de arte muito bem sucedido), o que importa neste caso é a união e identificação entre esses dois irmãos, que compuseram cartas desinibidas com um olhar bastante realista – e que provavelmente foram a única companhia do pintor por muito tempo. Vincent van Gogh foi considerado um lunático durante toda a vida e, mesmo sendo um dos artistas mais conhecidos da história, até hoje é marcado pela imagem de um artista isolado e incompreendido.


[...] Aquele que prefere permanecer só e tranquilo em sua obra, e não quer ter mais que uns poucos amigos, é quem circula com maior segurança entre os homens e no mundo. É preciso não se fiar jamais no fato de viver sem dificuldades ou sem preocupações ou obstáculos de qualquer natureza, mas não se deve procurar ter uma vida muito fácil. E mesmo nos ambientes cultos e nas melhores sociedades e circunstâncias mais favoráveis, é preciso conservar algo do caráter original de um Robinson Crusoé ou de um homem da natureza, jamais deixar extinguir-se a chama interior, e sim cultivá-la. E aquele que continua a guardar a pobreza e que a preza, possui um grande tesouro e ouvirá sempre com clareza a voz de sua consciência; aquele que escuta e segue esta voz interior, que é o melhor dom de Deus, acabará por encontrar nela um amigo e jamais estará só... (VINCENT a THEO, 3 de abril de 1878)


O Vinhedo Vermelho (1888), de Vincent Van Gogh, foi comprado por 400 francos pela pintora Anna Boch (1848-1936). Acervo: Museu Estatal Pushkin de Belas Artes. (Imagem: Reprodução/Kuadros)


Imagine corresponder (e aqui uso a palavra em seu outro significado: Troca de mensagens, cartas) com alguém que passou pelas mesmas coisas que você? Alguém que possui as mesmas angústias, mesmas dúvidas e assombrações. Alguém que te assegure de que, no final, tudo vai ficar bem, como em Cartas a um Jovem Poeta:


Quanto mais silenciosos, pacientes e abertos formos enquanto tristes, mais profunda e certeiramente o Novo nos adentra, melhor o adquirimos, mais ainda ele será o nosso destino, e nos sentiremos intimamente aparentados e próximos dele quando "acontecer" a qualquer dia mais adiante (isto é: saindo de nós e se juntando aos outros). E isso é preciso. [...] aos poucos também aprenderemos a reconhecer que aquilo que chamamos de destino sai de dentro das pessoas, e não vai de fora para dentro delas. Só porque tantos não sugaram os seus destinos enquanto viviam dentro deles, enquanto viviam neles, e não os sugavam e os transformaram em si mesmos, não reconheceram o que saía de dentro deles (RILKE a KAPPUS, 12 de agosto de 1904)


Agora, melhor ainda: imagine alguém que vive essas angústias, dúvidas, assombrações e descobertas ao mesmo tempo que você. A carta como uma forma de compartilhar a experiência vivida, tête-à-tête. Não era uma pessoa falando para 50 mil ou 2 milhões, como nas redes sociais, mas era alguém dialogando com um único outro alguém. 


Em Lygia Clark – Hlio Oiticica: Cartas (1996), encontramos dois neoconcretistas brasileiros (já reconhecidos internacionalmente) dividindo o cotidiano como artistas de maneira bastante descontraída e sincera. O conteúdo das cartas mostra, inclusive, outras realidades do que se imagina da vida de um artista de projeção global do século 20 e narra, muitas vezes, processos artísticos que revelam o estilo de cada um:


Comecei já a trabalhar catando pedras nas ruas, pois dinheiro não há para comprar material! Uso tudo que me cai nas mãos, como sacos vazios de batatas, cebolas, plásticos que envolvem roupas que vêm do tintureiro, e ainda luvas de plástico que uso para pintar os cabelos! (CLARK a OITICICA, 21 de setembro de 1968)


Diálogo de Óculos (1968), de Lygia Clark. Acervo: Lygia Clark


Para além da arte (e também trazendo a discussão para uma perspectiva mais contemporânea), em Uma Garrafa no Mar de Gaza (2005), o personagem palestino Naim atende ao pedido de Tal, de Jerusalém, e escreve um e-mail como resposta à sua mensagem na garrafa. Os jovens passam a conversar com frequência via e-mail: falam sobre suas vidas, permeadas pelos conflitos políticos e bélicos entre os dois países, mas também por conflitos comuns a qualquer jovem. Veja, mesmo que o ambiente tenha sido transferido de um ambiente material/analógico para o digital, o propósito não deixa de ser o mesmo: corresponder


Sou da época em que colecionávamos papéis de carta, sem nunca realmente usar nenhum deles. Serão, por tempo indeterminado, folhas paradas – com pauta ou sem pauta, perfumadas ou sem cheiro, coloridas ou pb – ali, guardadas e intactas, sem nenhuma utilidade ou probabilidade de correspondência.


Minha voz no vácuo é um barulho que me acorda todos os dias. E que delícia seria receber uma carta no dia de hoje.


Estátua de Carlos Drummond de Andrade no Rio de Janeiro. (Foto: Márcio Alves)


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REFERÊNCIAS LITERÁRIAS


Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke. Tradução: Claudia Dornbusch (Editora Planeta, 2022)


Cartas a Theo, org. de Felipe Martinez e Jorge Coli. Tradução: Felipe Martinez (Editora 34, 2024)


Uma garrafa no mar de Gaza, de Valerie Zenatti. Tradução: Julia da Rosa Simões (Ed. Seguinte, 2012)


Lygia Clark – Hlio Oiticica: Cartas, 1964-74, org. de Luciano Figueiredo (Ed. UFRJ, 1998)

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