top of page

As Mil Faces de Walter Hugo Khouri

“Me deem um cantinho e dois ou três atores e atrizes, e eu faço um filme.” – WHK

Passaram-se 20 anos após a morte do cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003) até que uma retrospectiva extensa de sua obra fosse realizada da maneira que merece, com cópias restauradas de quinze de seus filmes, na Cinemateca Brasileira. Não à toa, essas mesmas duas décadas acompanharam também um movimento de reapreciação crítica do diretor que talvez seja o mais próximo que o cinema brasileiro teve, historicamente, da figura de um autor cinematográfico.


De clássicos como Noite Vazia (1964) a dramas existenciais que flertam com o erotismo da Boca do Lixo, passando por filmes de gênero e até mesmo uma adaptação live-action de Turma da Mônica, as faces do cinema de Walter Hugo Khouri são muitas. Ainda assim, todas remetem a apenas uma: a de um sujeito profundamente inquietado pelos abismos da existência, pelos mistérios da carne e pela insuficiência do homem frente ao mundo; cuja arte é resposta rigorosa a um sentimento de mal-estar próprio de seu tempo.


O cinema de Khouri reflete, em paralelo, o domínio clássico que fora adquirido como assistente em filmes da falida Companhia Vera Cruz (que posteriormente seria de posse do próprio cineasta e seu irmão), e o que havia de inédito na experiência do cinema moderno. Ao longo de sua carreira, que atravessou toda a segunda metade do século XX, não faltaram comparações com o cinema de Ingmar Bergman (1918-2007), Orson Welles (1915-1985) ou de Michelangelo Antonioni (1912-2007), este com quem Khouri partilha o vazio, o silêncio, os tempos mortos e a opressão da arquitetura moderna. Em um olhar mais atento, também enxergamos as estátuas de Rodin, os versos de Rilke, a arte japonesa e a filosofia existencialista do período pós-guerra, em seus filmes.


Sujeitado à toda sorte de comparações durante sua vida inteira, Khouri também deve ser entendido como um artista próprio e singular, um cineasta – sim – brasileiro que sistematizou uma mise-en-scène do mal-estar, usando o cinema como expressão de ideias e de inquietações intelectuais.


Trata-se de um cinema profundamente conectado à própria iconografia, ao seu universo mítico. A utilização de um sistema de imagens, a ser repetido ao longo da narrativa, é um procedimento recorrente em seus filmes: as estátuas em Noite Vazia; os seios femininos em As Filhas do Fogo (1978); a água do mar em A Ilha (1963); sombras, espelhos e objetos trançados em Estranho Encontro (1958); pinturas religiosas em Palácio dos Anjos (1970); e assim por diante.


Já dizia o cineasta Abel Gance que o cinema é a “música da luz”. Pois a trilha sonora é outro elemento sem o qual não se pode entender Khouri. Profundo amante da música clássica, há uma aproximação grande entre a geometria de seus planos, o rigor matemático da decupagem e o ritmo cardíaco das trilhas, algumas das quais compostas por seu primo Rogério Duprat - aproximação esta que realça o xadrez dos corpos, a presença dos abismos em filmes como Noite Vazia. Em todo caso, são as músicas que nos conduzem ao estado de transe que caracteriza boa parte dos filmes de Khouri.


Não é difícil entender o motivo pelo qual o cineasta foi tão rechaçado pelos contemporâneos do Cinema Novo, nos anos 1960, em especial Glauber Rocha (1939-1981). Este, mesmo tendo mostrado suas obras para pedir a opinião de Khouri no passado, não poupou críticas ao cineasta paulista no livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963). Rocha escreve, acusando Khouri de realizar um cinema burguês e desconectado das mazelas da dita realidade brasileira: “Enquanto fizer filmes de evasão, filmes autobiográficos, filmes, portanto, velhos e acadêmicos; enquanto julgar a moral do mundo através de seu moralismo ingênuo; enquanto se puser na perigosa condição de ‘alienado consciente de sua alienação’, estará se convertendo num intelectual servil a qualquer estado de mentira e de injustiça”. As preocupações estéticas que vinham na filiação de Mário Peixoto (diretor de Limite, 1931), como seria o caso de Khouri, eram encaradas com maus olhos na situação de guerra cultural que, então, se impunha, cuja vanguarda atuava na tentativa de associar arte e política.


É evidente que a crítica de Glauber se dirige a um antagonista digno de sua altura, que mais que qualquer outro cineasta de sua geração dominava os segredos da linguagem cinematográfica. Algo que é atestado pelo formalismo quase matemático do início de sua carreira, como em O Gigante de Pedra (1953), primeiro longa de Khouri, parcialmente perdido (cujos trechos remanescentes foram apresentados pela Cinemateca); Estranho Encontro (1958), A Ilha (1963) e Noite Vazia (1964). Este último, até hoje tido como a obra-prima de Khouri, é de um rigor tão preciso em seus enquadramentos pétreos e na dança entre corpos e espaços, que nos leva a entender que Khouri encontrou, entre todas as possibilidades, a única maneira possível de filmá-lo. No entanto, a História é caprichosa, e foi a crítica de Glauber Rocha que permaneceu colada a Khouri: ele seria sempre um cineasta na contracorrente da vanguarda, a serviço do status quo, falando sozinho.


Ou burguês demais para o gosto da crítica, ou muito intelectualizado para o público, e até excessivamente vulgar para ser levado a sério, Khouri nunca cedeu aos interesses externos, mantendo-se sempre fiel aos temas e formas que lhe moviam. Mesmo quando se aprofundou em um cinema erótico, nos anos 1970, usou o sexo para entender o vazio existencial, conectando erotismo e morte tal qual fazia Georges Bataille (1897-1962) meio século antes.


A má-compreensão foi tanta que seu famigerado Amor, estranho amor (1983), sobre o rito de crescimento de um garoto em meio ao golpe do Estado Novo, em 1937, até hoje é recordado como “o filme pornô de Xuxa Meneghel”, alcunha que continua reproduzida pela mídia - para o infortúnio do cineasta e da atriz que, para salvar sua carreira, procurou tirar o filme de circulação. Ele permanece pouquíssimo assistido, apesar de tudo. Os que enfrentam a obra se deparam com uma narrativa complexa, de ambiguidade moral e que continua a dialética edipiana entre desejo e repressão presente em toda a obra de Khouri; com direito a um momento belo e melancólico entre o protagonista e a atriz Vera Fischer, cena que antecipa Pixote (1980), de Hector Babenco (1946-2016).


Essa postura autoral, essa fidelidade ao seu universo poético, foi exposta também por Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), que tratou Khouri como um exemplo de pertinência estilística e defendeu a superioridade de seu filme Estranho Encontro em relação a Rio, Zona Norte (1959), de Nelson Pereira dos Santos. Tal pertinência poética é facilmente identificável: assistir ao início de Eros – o Deus do Amor (1981), com suas dezenas de atrizes, uma epígrafe de Norman Mailer que associa o sexo à origem da filosofia, e uma homenagem à cidade de São Paulo como reflexo do homem khouriano, sempre perdido em relação a si mesmo, deixa claro que este filme só poderia ter sido feito por uma pessoa.


Ao contrário do que afirma a crítica de Glauber Rocha, escrita no calor do momento, uma revisão contemporânea atesta os filmes de Khouri como documentos não apenas de um lugar – a São Paulo moderna que Khouri tanto conhecia, quase uma personagem de seus filmes –, como também de um tempo: o momento de transformações políticas e culturais dos anos 1960, retratado em As Amorosas (1968). Além de contar com uma participação da banda Os Mutantes, espelhando a aparição de The Yardbirds no filme Blow-Up (1966), de Antonioni, este é também o primeiro filme protagonizado pelo personagem Marcelo, figura-chave de Khouri, encarnado por uma série de atores em filmes futuros, que reflete o vazio existencial e a frustração do homem diante do desejo - temas frequentes no corpo de trabalho khouriano. Também há seu contraponto feminino: a personagem Ana.


Khouri, aliás, é frequentemente considerado como um “cineasta de mulheres”, que rapidamente entendeu a importância do sistema de estrelas de Hollywood e a presença dos rostos e dos corpos através da imagem. Seus filmes apresentam muitos close-ups e raccords de olhar, que visam a estabelecer um mergulho profundo na psique feminina, no seu modo de ver e entender o mundo. Mesmo tendo afirmado que o olhar masculino sobre a mulher prevalece, é inegável que os filmes de Khouri se destacam dos demais de sua época no que diz respeito a como retratam as personagens femininas. O Palácio dos Anjos (1970), que apresenta um grupo de amigas que decidem abrir um prostíbulo de luxo, e As Deusas (1973), sobre a relação entre uma mulher com sérios problemas psicológicos e sua terapeuta, trazem isso de maneira íntima. No segundo, é dita a frase: “se o homem desaparecesse da natureza, não faria diferença”. Certamente, um dos mantras da poética khouriana.


É As Filhas do Fogo (1978), no entanto, que permanece o cume entre as várias faces de sua obra. Ambientado em Gramado (RS), a narrativa apresenta uma jovem que viaja, junto com sua namorada, à cidade de seu pai, e lá descobre mistérios sobre sua falecida mãe, que testam os limites entre os planos da existência e da morte. Adotando elementos do cinema de horror folk, de uma iconografia própria ao universo feminino e das tradições do Sul do país, sua execução traz algo da ordem de uma fantasia delirante, de um transe musical. Se Khouri estabelece uma relação entre o cinema brasileiro com os grandes do cinema moderno europeu, não há como assistir As Filhas do Fogo e não lembrar da metafísica e dos experimentos de improvisação que Jacques Rivette (1928-2016) realizou com suas atrizes, em filmes como Céline e Julie vão de barco (1974), Duelle (1976), Noroeste (1976) e A ponte do norte (1981).


Esse filme representa, também, uma dialética interessante na obra de Khouri entre o profissional e o amador, e que remete à frase citada no início, de que para ele bastariam dois atores e uma locação para fazer um filme. Há, por um lado, a técnica da Vera Cruz, cujo desmonte pela iniciativa privada fora tematizado no ano anterior em Paixão e Sombras (1977). Por outro lado, a apreciação pelo insólito, pelos detalhes do gênero, a confusão constante entre o riso e o terror e a liberdade estética de alguns momentos trazem consigo o que há de melhor do amador no cinema – necessário lembrar que isto nada mais é do que a arte de amar e fazer o que se pode com o que se tem. O amador é também quem bota a mão na massa, e nada revela isso melhor que saber que o operador de câmera creditado como Rupert Khouri é, na verdade, um pseudônimo do próprio diretor.


Por que uma nova geração da cinefilia brasileira passa a encontrar em Khouri um cinema com que se identifica, no qual encontra uma fonte de inspiração? As respostas são muitas, mas acredito que sobretudo pela fidelidade do cineasta em relação a si mesmo, pela perspicácia de analisar seu tempo por lentes menos óbvias, pela insistência de trabalhar e pela abertura para fazer versos novos com palavras antigas – versos que continuam ressoando pela verdade que trazem em sua maneira de olhar os problemas inerentes à existência humana. Em cinema, são os defeitos que permitem enxergar as qualidades de uma obra. E não há de se negar que Walter Hugo Khouri era apaixonado por cada um dos defeitos e das virtudes de seus filmes - como filhos seus, são eles que oferecem algum tipo de alento ao desespero que é habitar o mundo. Disso Khouri sabia bem.


Walter Hugo Khouri (1929-2003) em 1982. (Imagem: Acervo Família Khouri)

214 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page