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Carvão: o absurdo que ressoa

Resenha analisa a corrupção do cotidiano retratada no filme Carvão, de Carolina Markowicz


Carvão (2022), primeiro longa-metragem da diretora Carolina Markowicz, marca o que seria a proposta substancial de suas produções e pesquisas: a sociedade e suas fissuras. Assim como em Pedágio (2023), Carvão explora a hipocrisia, palpável para  quem está assistindo, em um contexto ficcional específico. Em primeira análise, Carvão possui uma abordagem provocativa na qual a ideia de uma identidade nacional visceral considerada tão intrínseca às produções brasileiras desde o Cinema Novo cria um contexto delicado de se pisar, muito subestimado e normalmente caracterizado por cinéfilos como simples e entediantes. Trata-se de um público intelectual órfão do cinema nacional e fiéis admiradores de produções estrangeiras.



Nesse viés, acredito que a cronologia no cinema está intrínseca ao inconsciente coletivo. Assim como em diversos gêneros criativos, nada surge sem uma referência, mesmo que indireta. Guardamos imagens, falas e linguagem corporal em nossos cotidianos. A história me parece cíclica, ou melhor, constante, e sendo assim, as propostas conceituais do Cinema Novo para além de um cinema artesanal de baixo custo de produção, voltam à tona em Carvão. O filme apenas não troca com o público retratado, assim como os complexos filmes de Glauber Rocha (1939-1981), porém, tem muito a dizer à sua maneira sobre o tempo em que foi feito. Vê-se que a realidade sempre restabelece motivações e afetos. A atenção no filme de Carolina está sobre a desigualdade social, violência e alienação religiosa de um Brasil esquecido. E a motivação da diretora é expor estes vetores coletivos do cotidiano em um conflito narrativo ácido, acompanhado de atuações cruas e surpreendentes.


O enredo da obra cinematográfica desenvolve o universo de uma família sediada no interior de São Paulo, cujo sustento provém de uma carvoaria localizada no quintal da casa. Irene (interpretada por Maeve Jinkings) e Jairo (Rômulo Braga) moram com seu filho Jean (Jean de Almeida Costa) e o pai adoentado de Irene, Firmino (José Luis Arias). O conflito que transborda a maioria das reflexões estético-narrativas do filme é um acordo que demanda a execução do idoso na carvoaria para receber um novo hóspede, Miguel (um chefe da máfia argentina interpretado por César Bordón) em troca de uma quantia significativa de dinheiro. Nesse início da trama, nos primeiros minutos do filme, um traveling in mergulha por dentro da janela da casa da família, estabelecendo que aquele ambiente é o objeto de estudo narrativo, quase como se estivessemos espiando Irene nessa primeira cena, acompanhada de uma música de cunho religioso.


É interessante a abordagem religiosa relacionada ao assassinato de Firmino. Irene pede conselhos ao padre da cidade sobre o estado de saúde de seu pai, nitidamente buscando um consolo, uma garantia de que Deus concordaria com o que ela estaria prestes a fazer. Essa mesma cena, mais adiante, traz consigo o paradoxo histórico envolvendo a cobrança financeira de instituições religiosas. A montagem tem um papel fundamental para que se estabeleça um diálogo indireto da direção no audiovisual. Irene afirma para o padre que a sua família pretende colaborar mais financeiramente com a Igreja. O devoto responde com satisfação, apontando que, de fato, a instituição estaria precisando de doações. Fica evidente a colaboração narrativa da decupagem ao mudar do plano médio do diálogo, para um plano aberto mostrando a amplitude e decoração daquele espaço logo após as declarações, contestando um discurso que incentiva o sacrifício econômico por um ânimo religioso.


Retomemos o sentido do traveling citado anteriormente no texto para introduzir a substância da vigilância. O que cativa em Carvão é a utilização das especificidades de uma localização tão fielmente. No caso, recria-se os contatos de uma comunidade pacata supostamente próxima e a par dos acontecimentos alheios. Existe, aqui, um forte nó entre a vigilância, o julgamento e o suspense do filme. O suspense é sustentado pela obscuridade que cerca a morte de Firmino. O fingimento de Irene e Jairo deixa todas as interações sociais para além do universo cênico da casa extremamente tensa. A qualquer momento alguém pode descobrir que Firmino morreu. Ou que Firmino foi assassinado. Ou até a presença de Miguel, e sua representação da corrupção dos valores éticos da família.


Partindo deste ensaio anterior, os conflitos na educação de Jean e de sua construção ética como um indivíduo ainda em desenvolvimento inicial, são preocupantes. Carvão problematiza a exposição infantil à crueza condicional, ou seja, à visceralidade da violência e do suborno. Jean transmite uma gradativa mudança comportamental, refletida na compra de cocaína, exibindo uma perda de inocência ou de medo da realidade. Seria Miguel quem escancara a malícia individual? Ou seria a negligência parental dadas as circunstâncias psico-sociais de Irene e Jairo?


Nesse fluxo de ideias, a figura de Miguel na trama é muito significativa por três  motivos essenciais: o contraste de realidades; o despertar do desejo de Irene como mulher entediada; e a confusão moral citada no parágrafo anterior. Em primeira análise, é perceptível que Miguel não pertence àquele espaço, não só por não ser um membro familiar, mas por não entender a dinâmica cotidiana da família. Miguel até cria certo laço com Jean, mas todos os afetos são de uma perspectiva de indignação e tédio. Em segunda análise, nota-se um comportamento distinto de Irene com relação à presença de Miguel na casa. Ela começa a cuidar mais da aparência, a passar perfume e a relembrar sua beleza para, inconscientemente ou não, despertar a atenção de Miguel, que por outro lado, a vê como patética nesse sentido. Em terceira e última análise, Miguel representa a corrupção que virá a se instaurar em uma comunidade vulnerável - tal desvio vem de fora, primeiramente pela atendente do posto de saúde Juracy (Aline Marta). Essa relação é muito dúbia: supostamente as famílias são ajudadas financeiramente, mas o preço ético e emocional a se pagar retrata mais uma vez a vulnerabilidade - os poderosos se aproveitam daquelas famílias ofuscadas no mapa.


Ao final da obra cinematográfica, a voz do padre ecoa numa missa vespertina. Em diálogo poético com sua leitura, outro trabalho de montagem pertinente é exposto: Irene e Jairo queimando as roupas de Miguel na carvoaria após o terem matado. Essas duas cenas praticamente transcrevem reflexões sensíveis acaloradas em quase duas horas de filme. A toxicidade de toda a trajetória de Irene, Jairo e Jean é revelada nos olhos do casal no ato litúrgico. Em seguida, há indícios de uma repetição do suborno, que aparenta instaurar a cidade retratada. O valor cíclico fica evidente na cena em que Jean brinca na casa de Luciana (Camila Márdila), e tenta espionar a mãe da moça pela janela. A mesma vigilância exposta no texto é retomada nesta cena. Jean aparenta questionar se o que aconteceu com Firmino teria acontecido novamente em outra família. O comportamento de Luciana também leva o espectador a fazer o mesmo questionamento. O suspense da trama não sossega até o último quadro do menino atirando de brincadeira em seu amigo.



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1 Comment


Fiquei com vontade de assistir ao 1o longa da Carolina depois da análise bem elaborada por Duda. Boa dica!

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