Ensaio explora a escrita de Annie Ernaux, analisando a evocação das imagens por meio da memória
Retrato de Annie Ernaux. Foto: Marcus Schafer / The New York Times
Na fotografia acima (feita por Marcus Schaefer para o jornal The New York Times) encontramos uma Annie Ernaux de expressão sólida: boca cerrada; olhar atento; cenho rígido e imutável. A imagem segue uma estética à la André Kertész (1894-1985), na qual predominam o leve grau de distorções, o jogo de sombras e a tepidez das cores em detrimento de qualquer exuberância cenográfica. Seu rosto é iluminado parcialmente por luzes frias e gélidas que evidenciam seus olhos translúcidos e seus sulcos já profundos. Por outro lado, a iluminação não salienta detalhes de seu busto, cabelos ou até do plano de fundo embaçado no qual se encontra.
Se por meio de suas técnicas o fotógrafo procura transmitir uma mensagem subliminar, a que temos aqui é de austeridade: uma mulher que não se deixou dominar pelas regras do mundo enquanto redigiu sua história com aptidão e condensamento.
Quero me apropriar da fotografia e compará-la com a sua escrita: um artifício que tanto serve para iluminar como para obscurecer os acontecimentos de sua vida. Sontag (1933-2004) argumenta sobre percepções imagéticas em seu Ensaio sobre a fotografia (Companhia das Letras, 2004) quando trata das relações intrínsecas entre imagem fotográfica e surrealismo, que curiosamente florescem pela provocativa de um mundo em duplicata, da realidade sobreposta por si mesma de forma dramática e ao mesmo tempo rigorosa.
A realidade sobreposta é uma das destrezas na literatura da escritora francesa, que se apoia na rigidez do fato ao mesmo tempo em que produz versões imagéticas de uma realidade que só ela foi capaz de reter. Esse conceito trabalhado por meio da escrita em tom confessional oferece nuances, passagens e vislumbres. Projeta sombras, ângulos retilíneos e imagens manchadas pelo sentimento. Obtura cada detalhe no quadro capturado pelas palavras, narrando sem medo a obscenidade do desejo e a vulgaridade da culpa, como quando revela que só se lavava no dia seguinte para guardar o esperma do amante dentro de si, ou quando observava o sexo de um feto recém abortado.
Imagino Ernaux em seu local de escrita pronta para capturar uma lembrança como um fotógrafo captura uma composição de objetos. Seus escritos são análogos a ensaios fotográficos que possuem o aconchego de uma avó e o profissionalismo de uma douta. A produção oscila de acordo com o clima, sensibilidade, luz e filme. Se há rasuras e defeitos triviais, a artista refaz a obra: reescreve, ajusta o foco ou descarta. O importante é que algo venha à superfície e que sua experiência (mesmo que cheia das particularidades ínfimas de uma mulher em seu contexto) quebre e ultrapasse as fronteiras da nacionalidade, pessoalidade, idade e tempo; e o mais importante: que sirva como um meio de emancipação.
A partir dos seus escritos é possível identificar de forma clara seu contexto de vida, o qual compõe a ontologia dos seus sentimentos: integrou uma família de operários sofrendo as mazelas do pós-guerra; vivenciou uma política que visava a restituição dos ricos aos seus locais de poder; pertenceu a uma sociedade pré-revolução sexual, obcecada com as minúcias da vida íntima de uma moça, pronta para envergonhá-la e subjugá-la.
Em contrapartida, Ernaux sempre viveu num desejo pulsante de liberdade; sobretudo acerca de si mesma. Durante boa parte da juventude, esteve sob a imposição do que se esperava de uma mulher em meados do século 20. Isto não a impediu de recusar a binariedade do certo/errado, belo/deplorável, verdade/mentira, lhe permitindo ir além dos simplismos convencionais e rumo ao cerne da recôndita complexidade feminina, sobretudo humana.
Em sua autobiografia impessoal Os anos (Les Années, 2008), redigida em terceira pessoa, acompanhamos uma autora a realizar o ato mais banal: rememorar. Observamos a transmudação dos seus humores a cada estação, a cada novo livro. Suas metamorfoses ganham velocidade ao subir nos degraus da estratificação social, ao conhecer um novo homem e ao refletir demasiado sobre a passagem do tempo para percebê-lo como um palimpsesto.
Ela parte das imagens presentes nos álbuns de família para compor uma junção de intericonicidade e memória literária. Se faz necessário pensar na análise do discurso vinculado à sua obra, pois Ernaux não se vale apenas do léxico bruto das palavras, ela procura verter e moldar a linguagem imagética em literatura memorial.
Assim, o livro a ser feito representava um instrumento de luta. Ela não abandonou essa ambição, mas agora tudo o que mais gostaria era de poder captar a luz que toca nos rostos já desaparecidos, nos guardanapos manchados de comida nos encontros de família, essa luz que já estava nas histórias contadas aos domingos em sua infância e que continuou encostando em todas as coisas assim que eram vividas, uma luz interior. Gostaria de poder salvar para sempre. (Trecho de Os Anos, de ANNIE ERNAUX)
Para ela, a maneira mais eficaz de captar a luz que toca nos rostos já desaparecidos é mediante a memória e a escrita, dois atos que consequentemente evocam a fotografia subconsciente. A autora parte da memória constituída pela iconicidade do imagético amorfo e vai incrustando granulosidade e contornos. A imagem entregue ao leitor por meio da escrita é móvel, ininterrupta, fragmentada e remete aos conjuntos de relações não-localizáveis teorizados por Deleuze (1925-1995), estabelecendo um diálogo transversal entre os diversos elementos; nesse caso, suas vivências.
Se Ernaux viveu o fardo de uma vida triste na impossibilidade de atravessar a penumbra que a levaria para além da própria experiência? Não sabemos. O que sabemos é que sua experiência é única e coletiva. Humana e lasciva. Feliz e angustiante. Além de propriedade e domínio intelectual, sua escrita é uma forma de liberdade; uma fonte de ambiguidades que faz troça das mordaças moralistas; é humanidade em sua forma mais primitiva e erudita, como um transeunte que fotografa uma paisagem e sem se dar conta, captura o costume e a complexidade do tempo no qual está inserido.
Ernaux escreveu sobre seus amantes e experiências sexuais; sobre um aborto aos 23 anos; sobre a morte do pai; sobre a tentativa de feminicídio contra a mãe; sobre os fantasmas da irmã morta; sobre sua própria vida em contraste ao panorama político de seu país; e mais do que tudo: escreveu sobre escrever. O homem vai à lua, cai o muro de Berlim, a França estende suas garras sobre a Argélia, a extrema direita ganha força com os Le Pen, um reator da usina de Chernobyl explode, a tecnologia avança e Ernaux segue com o seu papel, sua caneta, rumo à escrita, rumo à restituição de imagens esquálidas que tendem ao desaparecimento, rumo ao escárnio de si mesma, rumo à autoexposição, rumo à exorcização de seus próprios demônios.
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REFERÊNCIAS
CORREIO, Nilton Milanez. Intericonicidade: funcionamento discursivo da memória das imagens. Acta Scientiarum. Language and Culture. Maringá, v. 37, n. 2, p. 197-206, 28 jul. 2015.
DELEUZE, Gilles. Cinema 2 - A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018. 424 p.
ERNAUX, Annie. O acontecimento. São Paulo: Editora Fósforo, 2022. 80 p.
ERNAUX, Annie. Os anos. São Paulo: Editora Fósforo, 2021. 224 p.
ERNAUX, Annie. O jovem. São Paulo: Editora Fósforo, 2022. 56 p.
ERNAUX, Annie. O lugar. São Paulo: Editora Fósforo, 2021. 72 p.
ERNAUX, Annie. A outra filha. São Paulo: Editora Fósforo, 2023. 64 p.
ERNAUX, Annie. Paixão Simples. São Paulo: Editora Fósforo, 2023. 64 p.
ERNAUX, Annie. A vergonha. São Paulo: Editora Fósforo, 2022. 88 p.
GINZBURG, Natalia. As pequenas virtudes. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 128 p.
SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 224 p.
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