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“Não vê que estou queimando?” ou A Súplica dos Incêndios

Ensaio busca compreender a memória das imagens a partir das figurações do fogo em Andujar, Kopenawa e Freud

[Este sonho] me foi contado por uma paciente que soube dele pessoalmente em uma conferência sobre o sonho; desconheço sua verdadeira fonte. Ele causou impressão a essa senhora devido ao seu conteúdo, pois não deixou de ‘ressonhá-lo’, isto é, de repetir elementos desse sonho num sonho próprio [...] As precondições desse sonho exemplar são as seguintes: um pai passou dias e noites inteiros junto ao leito do filho doente. Depois que a criança morreu, ele vai descansar num quarto contíguo, mas deixa a porta aberta, a fim de poder ver do seu quarto o cômodo em que se encontra o cadáver amortalhado do filho, rodeado por grandes velas. Um velho foi encarregado de velá-lo e está sentado ao lado do corpo, murmurando orações. Depois de algumas horas de sono, o pai sonha que a criança está parada ao lado de sua cama, pega seu braço e lhe sussurra em tom de repreensão: "Pai, você não vê que estou queimando?". Ele acorda, nota um clarão intenso que vem do quarto onde está o corpo, corre até lá, encontra o vigia idoso adormecido e as roupas e um braço do querido cadáver queimados por uma vela que caíra acesa sobre ele. (FREUD, 2017, p. 535)

Foi com esta narrativa mise-en-abyme que o psiquiatra Sigmund Freud (1856-1939) introduziu, em 1900, sua teoria sobre o sistema que rege a significação das imagens oníricas, naquele que seria o texto fundante da psicanálise, A Interpretação dos Sonhos. Rompendo com certa tradição racionalista do pensamento ocidental, o método introduzido nesse livro complexificou a noção de memória, compreendendo-a como um conjunto obscuro de inscrições variáveis que podem ser interpretadas a partir dos sintomas que emergem à revelia da instância do Eu. A imagem onírica adquiriu para Freud o estatuto privilegiado de manifestação inconsciente, local de realização de desejos renitentes e insuportáveis à constituição subjetiva, que só podem se manifestar na consciência quando disfarçados nas sobreposições e deslizamentos da cadeia significante. Neste processo de deformação, uma verdade inconsciente (o desejo em anamorfose, excluído da consciência) pode se manifestar na imagem onírica como mentira, ficção, jogo de condensação e deslocamento (Didi-Huberman, 2013;2015).


Introduzida no sétimo capítulo do livro, onde Freud desenvolve pela primeira vez o núcleo duro de sua metapsicologia, a interpretação do sonho da criança em chamas revela que, em um processo de sobredeterminação, o inconsciente do pai-sonhador deslocou para as labaredas surreais a febre e a doença que, na vigília, haviam levado seu filho a morte, sobrepondo-as ao “clarão de luz [que] atingiu os olhos do homem adormecido”. No sonho, portanto, um sintoma patológico (“arder em febre”) se converte, em processo de tradução intersemiótica, em um sintoma visual (corpo em chamas).


É curioso notar como essa figuração onírica narrada ao médico austríaco por sua paciente demonstra em si a sobrevivência na memória de uma imagem distante e sem origem definida (o sonho do pai desconhecido), coletada de uma miríade de imagens narradas (a conferência sobre os sonhos), dentre as quais esta ganhou um peso particular de inscrição na psique. O que há de mais íntimo na experiência de um sujeito tornou-se uma narrativa que se coletivizou para, em seguida, converter-se em nova intimidade psíquica no “ressonho” de outro sujeito (a analisanda); intimidade essa que retornaria à arena pública anos depois ao ser narrada no livro em que Freud lança as bases para sua clínica. Esse complexo rearranjo e retranscrição do sonho original em outras imagens e narrativas faz recordar a tese central do autor sobre os traços mnêmicos: “a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; ela é registrada em diferentes espécies de signos” (Freud, 2006, p. 281).


Não é sem razão que a imagem da criança em chamas é recuperada na conclusão de A Imagem Arde, um dos mais belos e potentes ensaios do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman, originalmente publicado em 2004. Segundo o autor, é no contato da imagem com o Real (campo traumático e irrepresentável da experiência subjetiva) que se revelam as marcas inconscientes de uma memória complexa, inscrita naquela abertura de tempos, mas (ainda) impassível de tradução, e por isso renitente no decurso do tempo; a ardência, o afeto da imagem no sujeito, é sintoma de uma fenda no sentido, um não-saber que emerge no presente e pede ao observador a suspensão diante da imagem para que se possa, no contato com ela, dar forma a essa experiência incomunicável (Didi-Huberman, 2015).


Neste sentido, o filósofo-historiador afirma que a imagem arde pela memória que carrega, isto é dizer, pela sua urgência (a imagem dialética do passado que surge como aviso no presente), pelo “movimento intempestivo” que lhe dá espessura (o anacronismo dos tempos que a atravessam) e pela impossibilidade de recuar de sua posição (a marca indelével da dor deixada nela). Essa vivência da memória dá-se a ver, com maior luminescência, quando nos colocamos diante de certas imagens incandescentes. Olhemos para uma delas.


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Eu a vira anteriormente em pequenos folhetos e painéis digitais, sempre muito pequena e recortada. Contemplando-a em seu tamanho e proporção original, logo ao abrir a porta da galeria, ela teve sobre mim um impacto único. Suas cores já seriam o suficiente para atrair o olhar do observador, incandesciam contra o cubo branco. Era como se a própria fotografia queimasse diante de meus olhos, liberando uma força de páthos que me tocava intimamente ao entrar em contato com aquela rasgadura. Lembro-me de sentir que a imagem me olhava de alguma forma. Quase inconscientemente, vi-me caminhando até ela, aproximei-me o máximo possível para ver todos os seus detalhes, até o último grão da imagem, como se olhando-a de perto eu pudesse sublimar a angústia que despertava em mim. Qual seria a fonte dessa agonia que me atingia? Que sentido se formara no acoplamento daquela imagem com meu olhar? Ou, melhor dizendo, qual ardência se formara no olhar daquela imagem para mim?


Chama-se Maloca em Chamas. É uma fotografia realizada em 1976 por Claudia Andujar como parte da série Casa, e teve importância particular na retrospectiva Claudia Andujar: A Luta Yanomami, realizada em 2018 pelo Instituto Moreira Salles (IMS); onde a vi pela primeira vez. Ela registra um ritual de renovação dos indígenas Yanomami, invocando uma forma distinta de se estar no mundo: “A queima da maloca para os índios representa renovação através da mudança. Quando a terra que ocupam já não dá mais frutos e a floresta ao redor não providencia caça, queimam suas casas para construir novas, em novos lugares, possibilitando, assim, um novo começo” (Art Ref, 2016). Desde que a vi, ela se tornou sinonímia da ardência das imagens em minha memória.

Maloca em Chamas (Claudia Andujar, 1976)


A retrospectiva na qual se deu meu encontro com a imagem narrava a longa luta dos Yanomami pela sua sobrevivência, em especial sua resistência ao genocídio perpetrado pelo Estado Brasileiro e pela iniciativa privada como continuação ideológica do projeto colonialista. A montagem expográfica fazia-a deslizar por essa cadeia histórica de significantes. Ela me lembrava, em especial, o sangrento Massacre de Haximu, instância do genocídio de Yanomamis em 1993, que terminara justamente com as casas das vítimas sendo queimadas pelos garimpeiros que as assassinaram (Kopenawa; Albert, 2019) . Quatro anos depois, ela retornaria à minha memória no incêndio de uma aldeia em Roraima após a violação e o assassinato de uma jovem indígena.


Em uma articulação intempestiva, os tempos de uma catástrofe permanente atravessam a fotografia de Andujar. Ela é, de modo ambivalente, indício de uma tradição cultural ameaçada (representação antropológica) e significante intempestivo do processo de destruição dessa mesma cultura (apresentação anacrônica). Sua ambivalência foi aberta e ressaltada justamente pelo discurso expográfico que permitiu uma montagem de tempos na qual a imagem se ressignificava. Os sentidos da catástrofe tornavam-se mais pregnantes ao longo do período de exibição da retrospectiva: nos últimos meses de 2018, foi incluído um novo acontecimento na linha do tempo da luta Yanomami, inscrita nas paredes da exposição, uma afirmação do presidente recém-eleito Jair Bolsonaro dizendo que visava encerrar a demarcação de terras indígenas. Tendo sido produzida em 1976, a imagem dizia algo sobre a violência genocida que ecoa em diferentes estratos de temporalidade (o massacre de 1993, a ameaça de 2018, as violências de 2022).


A suspensão do observador diante da imagem permitia legibilidade para esse alerta pois o aviso de incêndio, de perigo de destruição cultural, se manifestava na própria organização formal da fotografia. Sua potência não se reduz apenas ao campo discursivo: ela se completa em um jogo de perceptos e afecções estabelecido com aquele que a olha. Há na imagem de Andujar algo que nos convida à tatilidade do olhar: presenciamos hapticamente a rebeldia do fogo, sua natureza incontrolável, que se torna onipotente na fotografia pela predominância de cores quentes obtidas pela experimentação com filme infravermelho — um grande arbusto arde, rubro, no primeiro plano, como um grande novelo de lã cor-de-sangue; o amarelo das chamas domina todo o céu, espalhando-se por toda superfície fotográfica. É como se ela abrisse o tempo num rasgo, capturando uma figuração da catástrofe, já-ocorrida e anunciada, que lampeja na epiderme de nosso tempo: “Só podemos apreender o passado como imagem que, no instante de sua cognoscibilidade, relampeja e some para sempre” (Benjamin, 2020, p. 86).


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O capítulo final de A Queda do Céu (Plon, 2010) descreve uma viagem de Davi Kopenawa a Nova York feita no início da década de 1990, realizada com o intuito de obter apoio internacional para impedir o avanço do garimpo contra as terras yanomami. Nesta altura de sua vida, Kopenawa era recorrentemente acometido por crises nas quais seu corpo “ardia de febre”, pois fora vítima de uma epidemia de malária trazida ao território yanomami pelos garimpeiros. Foi nesta condição febril que o xamã teve seu próprio sonho do fogo:

Certa noite, vi também o céu ser incendiado pelo calor da fumaça das fábricas. Os trovões, os seres raios e os fantasmas dos antigos mortos estavam cercados de chamas imensas. Depois, o céu começou a desmoronar sobre a terra com grande estrondo. Isso sim era mesmo assustador! Onde os brancos vivem, o céu é baixo e eles não param de cozer grandes quantidades de minério e de petróleo. Por isso as fumaças de suas fábricas sobem sem trégua para o peito do céu. Isso o torna muito seco, quebradiço e inflamável como gasolina. Ressecado pelo calor, torna-se frágil e se desfaz em pedaços, como uma roupa velha. Tudo isso preocupa muito os 2. Em meu sonho, eles tentavam curar o céu doente, fazendo girar a chave da chuva, para afastar a raiva do braseiro que o devorava. Exaltados, despejando torrentes de água sobre as chamas, gritavam para os brancos: "Se vocês destruírem o céu, vão todos morrer com ele!". Mas estes não davam nenhuma atenção a seus gritos de alerta. E eu não falei desse sonho a ninguém, porque estava longe de minha casa e dos meus. Assim é. Se os espíritos não continuarem inundando o céu daquele jeito, ele vai acabar queimando por inteiro. (Kopenawa; Albert, 2019, p. 432).

Anos mais tarde, esse relato Kopenawa teria papel central na etnografia dos sonhos indígenas realizada por Hanna Limulja (2022), que interpretou a narrativa em questão como um pesadelo apocalíptico significando a destruição irreversível do povo yanomami pelo mundo dos brancos, uma figuração tão angustiante que o sonhador não conseguia contá-la a ninguém, impedido de socializar seu próprio incêndio com o Outro para entender seu sentido. Na figuração onírica ali formada, os apanágios do discurso do progresso civilizatório (as fábricas, a cidade) convertem-se nos signos de uma concepção de catástrofe iminente, o mundo a ruir sob as chamas, vidência relacionada à memória de uma cosmovisão yanomami: “se o céu acabar pegando fogo, desabará mais uma vez. Então, seremos todos queimados e, como nossos ancestrais do primeiro tempo, arremessados no mundo debaixo da terra” (Kopenawa; Albert, 2019, p. 371).


A fotografia de Andujar nos fornece, como rasgadura do discurso, o material figural para um fragmento desta cosmovisão, poderíamos dizer que é um “cosmorelance” da catástrofe: é como se todo o mundo da imagem fosse uma só ardência que integra a terra devastada, subindo como fumaça ao firmamento, e o céu incendiado, convergindo para o mundo sobre o qual desaba. De diferentes modos, as imagens da criança, da maloca e do céu da cidade em chamas são entes desejantes que levantam questões candentes de traumas pessoais e coletivos, elas apresentam seus incêndios como súplicas a um sujeito que as complete com o gesto do olhar — “Veja! Estou queimando!” — , que tome posição diante das ardências desse Real — “Desperte! O fogo se aproxima!” — e, por fim, que partilhe de sua condição sofrente se deixando também ser chamuscado pela dor desse Outro que o toca — “Venha! Queime-se em mim!”.


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REFERÊNCIAS

ARTE REF. Imagens da vida em dois mundos na Galeria Vermelho., mai. 2016. Disponível em: https://arteref.com/fotografia/imagens-da-vida-em-dois-mundos-na-galeria-vermelho/


BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história: edição crítica. São Paulo: Alameda, 2020.


DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013.


DIDI-HUBERMAN, Georges. “A imagem arde”. In: Falenas: ensaios sobre a aparição, 2. Lisboa: KKYM, 2015. p. 292-319


FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, vol I. Rio de Janeiro: Imago, 2006.


FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM, 2017.


KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami . São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


LIMULJA, Hanna. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami. São Paulo: Ubu, 2022.


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