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O Documento enquanto Obra

Ensaio aborda o potencial artístico de materiais que documentam o processo criativo a partir de trabalhos de Letícia Parente


No meu último texto, propus uma reflexão sobre os vídeos de Letícia Parente (1930-1991) como documentos poéticos situados social, política e historicamente. Gostaria, agora, de fazer o movimento contrário e me debruçar na documentação “de apoio”, os registros de processo e de trabalho dessa artista, buscando compreendê-los como parte fundamental de sua prática artística e de divulgação de sua obra; assim como refletir sobre os possíveis desdobramentos desse material.


Letícia Parente formou-se em Química, em 1952, dedicando-se ao magistério durante praticamente toda sua vida. Apenas vinte anos mais tarde, em 1972, iniciou seu estudo artístico, no Núcleo de Artes e Criatividade (NAC), do Rio de Janeiro. Produziu por cerca de quinze anos; transitando entre a gravura, fotografia, desenho, instalação, xerox, arte postal e, claro, o vídeo. Considero interessante destacar essa dupla atuação não só pela influência de uma área na outra, como é evidente no vídeo Preparação II (1975) e na instalação Medidas (1976), mas pela empreitada que significa conciliar casa, família e carreira, em especial sendo mulher, não só na década de 1950, como ainda hoje.


Apesar de a artista ter obtido reconhecimento (em ambas as áreas, mas manteremos o foco em seu percurso artístico) ainda viva e seu trabalho ter circulado em exposições nacionais e internacionais de importância, sua obra ainda é pouco conhecida e discutida tanto pela crítica como pelo grande público. Segundo André Parente - filho, parceiro de trabalho e atual responsável pela organização e divulgação da obra de Letícia -, isso se deve não só ao fato de a arte-mídia ter ganhado espaço no circuito artístico brasileiro apenas recentemente, mas ao despreparo das instituições (museus, colecionadores e, inclusive, artistas) no que toca a salvaguarda de obras, especialmente em suportes não-tradicionais (PARENTE, 2019, p.1). Ele ainda destaca que como Letícia não tinha meios para fazer cópias de seus trabalhos, enviava os masters - a “cópia” original - para as exposições, o que acarretou em uma perda de cerca de um terço de seus vídeos.


Há, contudo, uma fonte muito rica de acesso a sua obra: os textos, rascunhos, croquis, anotações, releases e fotografias, produzidas muitas vezes pela própria Letícia como parte de seu processo de trabalho. Muitos são os textos não só sobre Letícia Parente, mas de Letícia Parente compilados no site da artista. Esses documentos nos permitem vislumbrar as obras perdidas, o processo de criação da artista e também as reverberações que esses trabalhos tiveram e que ainda têm. Para melhor compreendermos a importância dessa documentação, tomaremos como exemplo três obras: a instalação Medidas (1976), o diaporama Armário de mim (1974) e o vídeo A Chamada (1978).


A instalação Medidas foi exibida no MAM-RIO e é considerada a primeira, no contexto brasileiro, a unir arte e ciência. Dividida em “estações”, a exposição convidava o público a coletar dados sobre o próprio corpo numa forma de, nas palavras de Letícia, “denunciar (...) a atmosfera de concorrência e tensão sob a qual vivemos no tempo histórico, em que os sistemas procuram enquadrar as pessoas para classificá-las quantitativamente ou distingui-las segundo categorias fixas de comportamento”.


Segundo Anne Bénichou, quando é necessário - ou se escolhe - estudar o documento como objeto principal de análise, ele se torna capaz de instigar uma experiência estética (BÉNICHOU, 2013, p.176). Esse parece ser o caso de Medidas, já que sua extensa documentação permite diversas formas de acesso à essa instalação: se a partir do texto Proposta de arte experimental, escrito pela própria artista, podemos acessar os objetivos e fundamentação teórica do trabalho; pelo folder, pelas fotografias e, em especial, pela planta baixa desenhada por Letícia (imagem abaixo) e pelo vídeo explicativo, podemos ter uma ideia clara do que foi a experiência de visitar a instalação. Algumas das proposições descritas no vídeo podem até mesmo serem reproduzidas pelo espectador, permitindo uma forma de acesso nova e diferente a essa obra e a essa documentação: longe da instituição museológica e tendo a obra como ponto de partida, porém não de chegada. Uma participação, talvez, ainda mais intencional do que o trabalho originalmente propunha.

Letícia Parente. Planta baixa de Medidas, 1976.


O, agora, vídeo Armário de Mim, está disponível online em diversos sites e plataformas, entre o site da artista, da Galeria Jaqueline Martins, de curadores e admiradores. Na página do Vimeo de André Parente a legenda explica: “Este trabalho de Letícia Parente data de 1974. Ele era originalmente um audiovisual, isto é um diaporama. Alguns slides foram perdidos, por isso tive de reeditá-los. Letícia deixou um texto de sua voz over, agora lida por Lucas Parente”.


O contato sempre próximo de André Parente com a produção da mãe - sua experiência pessoal e testemunho, portanto - aliado às anotações de Letícia sobre Armário de Mim, permitiu a restauração, adaptação e divulgação desse trabalho. Fica clara, aqui, a importância da documentação, nesse caso os registros de processo, para a preservação e acessibilização de obras de arte, ainda que com mudanças da proposta original.

Print (ou slide) de Armário de Mim, 1974





Anotações sobre Armário de Mim e sua narração



Para finalizar os exemplos, falaremos de A Chamada, vídeo de 1978 considerado perdido. Dentro do documento “Proposta geral da obra em vídeo”, disponível no site da artista, temos a descrição ou roteiro dos vídeos produzidos por Letícia, entre eles de A Chamada:

A artista entra num apartamento, chega à sala onde numa mesa está um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a pergunta: “ALÔ, É A LETÍCIA?”. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando. Liga o telefone para o seu próprio apartamento e deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à rua, desce a ladeira entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu apartamento, abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve sua voz gravada perguntando, “ALÔ, É A LETÍCIA?” Responde, “É A LETÍCIA...”

Seguindo o pensamento de Bénichou, se um documento é considerado vestígio, testemunho que carrega a autenticidade de algo; a documentação que os artistas produzem sobre suas obras constitui um vestígio delas, vestígio esse que atesta sua existência (BÉNICHOU, 2013, p.172). Assim, o roteiro de A Chamada afirma, garante a existência deste trabalho e nos permite, de alguma forma, acessá-lo. Tendo em vista que se trata de um vídeo (ou vídeo-performance) de arte conceitual, na qual a ideia ou o conceito é fundamental para compreensão da obra, podemos considerar que esse acesso é, na verdade, completo. Como defende Sol LeWitt, “a ideia em si mesma vale tanto como obra de arte quanto o produto final” (LeWitt, 1998, p. 911 apud Bénichou, 2013, p.177).


Podemos então questionar se a proposta de Letícia Parente e as possibilidades de interpretação e reflexão que ela instiga não são mais interessantes ou mesmo importantes que o acesso à obra original, ao produto. Esse pensamento vai ao encontro das proposições da arte conceitual e da desmaterialização da arte, que buscavam e buscam outras formas de criação e acesso às obras. A desmistificação e aproximação da arte e da vida - como discutido no meu texto anterior. Entender o documento como obra é abrir espaço para outras compreensões sobre o que é Arte, sobre como e por quem ela é feita.


Um belo exemplo desse movimento é a 35ª Bienal de São Paulo, intitulada Coreografias do Impossível, que não só nos apresenta os mais variados tipos de documentos sobre diversos grupos culturais ao redor do mundo - fotografias “caseiras” e jornalísticas, livros, cadernos de processo, recortes de jornal e revistas, documentários -, como não faz distinção entre esses materiais e as outras “obras de arte” apresentadas. Tudo ali é arte, tudo ali é cultura, tudo ali é vida.


Entender documentos como obras, em especial os que acompanham e amparam o percurso de criação artística, é valorizar a reflexão, a vivência, a cultura. É valorizar o processo em detrimento ao produto, em detrimento ao mercado.


Analisar os documentos de Letícia Parente - e de tantos e tantas outras artistas - como obras autônomas nos permite preservar, acessibilizar, compreender e aproveitar seu trabalho, assim como aprofundar e dar continuidade a suas reflexões. Nos permite ser mais ativos, participativos e críticos na apreensão e, por que não, produção da Arte.


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REFERÊNCIAS


PARENTE, André. “ALÔ, É A LETÍCIA?”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 8, jan. 2014. ISSN: 2316-8102. Disponível em: <https://performatus.com.br/estudos/leticia-parente/#:~:text=%5B1%5D%20Trata%2Dse%20de,'.> Acesso em: 12 de outubro de 2023.


BÉNICHOU, Anne. “Esses documentos que também são obras…”. Revista-Valise, Porto Alegre, v. 3, n. 6, ano 3, dez 2013. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/RevistaValise/article/download/44418/28601/0> Acesso em: 13 de outubro de 2023.


PARENTE, Letícia. Preparação II, 1975. Disponível em: <https://vimeo.com/106547188>. Acesso em: 20 de julho de 2023.


PARENTE, Letícia. Armário de mim, 1974. Disponível em: <https://vimeo.com/92756529>. Acesso em: 13 de outubro de 2023.


PARENTE, Letícia. Proposta de arte experimental. Disponível em <https://www.leticiaparente.net/proposta-de-arte>. Acesso em: 13 de outubro de 2023.


PARENTE, Letícia. Proposta geral da obra em vídeo. Disponível em <https://www.leticiaparente.net/proposta-de-video>. Acesso em: 13 de outubro de 2023.


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