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O vídeo como documento em Letícia Parente

Abro meu espaço de escrita na Revista Galérica fazendo um breve histórico do vídeo no Brasil e analisando a obra de videoartistas mulheres. Nesse primeiro momento, buscarei situar a produção de Letícia Parente (1930 - 1991) como uma obra consciente de si, explorando o caráter documental de suas videoartes. Num segundo texto, procurarei entender a importância da documentação de apoio - cadernos de artista, registro de processo, rascunhos, croquis - não só para compreensão da obra da artista, mas como parte estruturante dela.


Desde 1956, com as experiências performáticas e intervenções na mídia de Flávio de Carvalho (1899 - 1973), o vídeo rascunhava seu lugar na prática artística brasileira. Mas é a partir de 1974, com a chegada da Sony Portapak no Brasil, que ele se consolida enquanto dispositivo-linguagem gerador de novas possibilidades de produção, documentação, recepção e poética.


Para entender o percurso do vídeo e da videoarte no Brasil, é preciso contextualizar as movimentações artísticas, sociais e políticas das décadas de 1960 e 1970, as quais impactaram diretamente e indiretamente não só o desenvolvimento da linguagem videográfica, mas também a produção de artistas como Letícia Parente, cujo trabalho analisaremos brevemente mais adiante.


Segundo Fernando Cocchiarale, artista integrante da chamada geração pioneira da videoarte no Brasil, “a videoarte é uma manifestação, uma expressão da crise da modernidade”, crise essa que dá origem e é evidenciada pela Arte Conceitual - movimento que prioriza a ideia, o conceito, por trás da obra em detrimento da obra como produto pronto, disponível para exibição, contemplação e, claro, comercialização. Nesse sentido, a Arte Conceitual carrega uma proposta de valorização do processo e de ampliação das possibilidades de produção e de suportes artísticos, o que vai levar à Body Art, às performances, aos happenings, à arte-postal e, é claro, ao vídeo.

Fundo Flávio de Carvalho/Cedae — iel Unicamp


Nesse mesmo período, há um forte movimento de aproximação da arte e vida, com a desmistificação - e desmaterialização - do objeto artístico e questionamento da sua tradicional unidirecionalidade, ao exemplo dos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica que, segundo Luiz Cláudio da Costa, “radicalizaram essa transformação ao promover o corpo como lugar, meio e suporte de suas expressões artísticas em trabalhos sensoriais” (DA COSTA, 2007). Ainda segundo da Costa, o interesse de muitos artistas na imagem técnica - a imagem videográfica - vinha justamente da possibilidade de registrar novas experiências corporais, como fazia o Grupo Fluxus com suas apresentações/performances ousadas e inovadoras.


Poderíamos associar então, de maneira geral, a produção videográfica com o registro de performance, ou ainda, com a videoperformance: ações performadas apenas para câmera, ou seja, sem a presença do público, e normalmente gravada em ambientes internos; formato bastante frequente nos vídeos de Letícia Parente e dos artistas da geração de 1970, a geração pioneira.


São consideradas características dessa geração a simplicidade formal, o uso moderado de tecnologia, a articulação dos elementos do e no tempo real, a ideia de inacabamento, a compreensão da arte como processo e a vivência da experiência estética como performance, como ação (MACHADO, 2001 / MELLO, 2008). É interessante destacar que, apesar de o vídeo ter baixo custo de produção, ser um equipamento de fácil manejo e, diferentemente da película, trazer autonomia dos laboratórios de sonorização e revelação - um fator que dava mais liberdade e segurança aos artistas, uma vez que muitos laboratórios eram também centros de vigilância da ditadura civil-militar (MACHADO, 2001) -, muito desse “projeto estético” se deu em função de limitações tecnológicas, pois o acesso a equipamentos de edição demorou a se difundir no país.


Tratava-se, portanto, de uma produção muito mais empenhada em desenvolver conceitos, propor novas experiências estéticas, mobilizar corpos e subjetividades e menos preocupada em refletir sobre o dispositivo, a tecnologia, o meio de produção. Diferentemente do Cinema, não havia uma grande preocupação estética, um rigor na composição do quadro ou no desenho de luz. O interesse desses primeiros videoartistas era documentar a ação poética.


Num primeiro momento, ou seguindo uma visão mais tradicional, podemos pensar o documento como um registro neutro. Contudo, proponho analisarmos a documentação em Letícia Parente - nesse caso, por meio das videoartes e videoperformances - como uma produção social e politicamente consciente, que, tomando emprestado o termo de da Costa, produz cicatrizes: uma marca visível deixada no corpo por um ferimento, por um trauma - e aqui podemos pensar tanto em marcas no corpo físico como no corpo social.


Se a noção de documento carrega a ideia de autenticidade, de prova, de vestígio ou mesmo de testemunho, garantindo a veracidade de uma situação ou acontecimento, documentar uma ação poética é, portanto, afirmar a realidade - e talvez necessidade - das provocações e significados que essa ação carrega.


Letícia Parente iniciou e desenvolveu seu trabalho durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Seus vídeos são todos gravados no espaço doméstico, em planos-sequência, geralmente sem falas, registrando ações feitas pela artista. Essas ações são sempre relacionadas à ocupações ditas femininas - passar roupa, costurar, se maquiar, organizar a casa e a família - e, a princípio, são simples e rotineiras. Não fosse a camada inesperada que a artista acrescenta ao modo como realiza cada uma dessas tarefas: costurar é no próprio pé; passar a roupa, é com ela dentro; organizar o armário é se colocar no cabide; se maquiar é tapar os olhos e boca com esparadrapos e desenhar por cima deles.

In (1975), Letícia Parente. Print do vídeo.


Como destaca André Parente, filho, parceiro de trabalho e responsável pela organização e divulgação da obra de Letícia atualmente, são “preparações e tarefas por meio das quais o corpo revela os modelos de subjetividade que o aprisionam”. São ações que, quando registradas e exibidas, geram estranhamento e, assim, revelam as cicatrizes deixadas pela construção de “corpos dóceis e disciplinados”. Colocar essas ações em vídeo é documentar, e portanto atestar, sua existência e também sua violência, e, no caso da obra e contexto de Letícia Parente, essa documentação é uma importante forma de reflexão e resistência.

Tap and Touch Cinema (1982), Valie Export. Foto: Werner Schulz / Museu Albertina, Coleção ESSL


Apesar de seu caráter insólito, as ações realizadas por Letícia Parente eram bastante “tranquilas” quando comparadas com a radicalidade das performances da arte feminista que aconteciam no exterior: enquanto nos Estados Unidos e Europa as artistas discutiam abertamente questões como liberdade sexual, violência contra a mulher, direito ao aborto e ao divórcio em performances como Tap and Touch Cinema (1968), de Valie Export, ou Cut Piece (1965), de Yoko Ono, ou Rape Scene (1973), de Ana Mendieta; no Brasil do regime militar, as mulheres se viram obrigadas a focar na defesa dos direitos humanos, vinculando-se, inclusive, a setores mais progressistas da Igreja Católica e engavetando assuntos nevrálgicos para o avanço da luta pela igualdade de gênero (BARROS, 2016, p. 12). Nesse contexto, a possibilidade do registro em vídeo de performances no ambiente doméstico é o que possibilita que muitos trabalhos sejam realizados e que temas - ainda hoje - importantes para o contexto brasileiro sejam discutidos.

Preparação I (1975), Letícia Parente. Print do vídeo



Tarefa I (1982), Letícia Parente. Print do vídeo


A linguagem videográfica dessa primeira geração se mostra, então, antes de uma experiência estética, uma experiência ética, que Letícia Parente soube articular com maestria. Apesar de não se mostrar preocupada em destrinchar todas as possibilidades do aparato tecnológico, a artista o compreende e o usa a favor de seu discurso: em Preparação I (1975), por exemplo, vídeo em que Letícia cobre seus olhos e boca com esparadrapos e desenha sobre eles, há um zoom e um movimento de câmera que nos permite acompanhar e compreender a performance, sem contudo, perder a ideia de registro. Ou ainda em Tarefa I (1982), vídeo em que a artista deita-se sobre a tábua de passar e a funcionária negra - importante destacar - passa sua roupa com ela dentro, é enquadrado cortando os rostos de ambas as mulheres, o que não só preserva suas identidades, como enfatiza o papel que cada qual cumpre naquela situação. Não se trata de meros registros de performances, mas de videoperformances documentais, pensadas para serem tanto obras como documentos que evidenciam cicatrizes e, por isso, fazem refletir sobre o óbvio não-dito, sobre a condição da mulher na sociedade, sobre a relação com o corpo, com a classe e com a pátria.


Os vídeos de Letícia Parente documentam as sensações, os sentimentos, as subjetividades contidas nas ações, nas vivências - íntimas, supostamente sigilosas - que registra. Torna-as visíveis, torna-as fatos. Ampliados, inusitados, por vezes imaginados, mas fatos. A serem vistos, analisados, repensados. Documentando essas sensações e pensamentos, Letícia Parente mobiliza ações e afetos, sugerindo outras formas de pensar a subjetividade que, sabemos, atua não só em contextos íntimos, mas sociais e políticos.


Documentar a ação poética é também, portanto, uma ação poética. Política e consciente de si. Tratarei mais sobre isso no próximo texto.


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Referências


BARROS, Roberta. Elogio ao Toque - ou como falar de arte feminista à brasileira.Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2016.


COCCHIARALE, Fernando. A terceira via. Entrevista concedida a André Parente. Disponível em: <https://www.leticiaparente.net/a-terceira-via>. Acesso em: 20 de julho de 2023.


COSTA, L. C. . Letícia Parente: a videoarte e a mobilização do corpo. In: Rubens Machado Jr.; Rosana de Lima Soares; Luciana Corrêa de Araújo. (Org.). Estudos de Cinema - SOCINE. 1ªed.São Paulo: Annablume, 2007, v. , p. 369-374.


LUZ, Rogério. A videoarte de Letícia Parente. In: Letícia Parente, arqueologia do cotidiano: objetos de uso; André Parente e Katia Maciel (Org.). 1ªed. Rio de Janeiro: +2 Editora, 2011, p. 58 - 71.


MACHADO, Arlindo. (2001). As três gerações do vídeo brasileiro. Sinopse (São Paulo), 3(7), 22-33. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.1807-8907.v3i7p22-33> . Acesso em: 20 de agosto de 2023.


MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora Senac, 2008.


PARENTE, André. “ALÔ, É A LETÍCIA?”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 8, jan. 2014. ISSN: 2316-8102. Disponível em: <https://performatus.com.br/estudos/leticia-parente/#:~:text=%5B1%5D%20Trata%2Dse%20de,'.> Acesso em: 20 de agosto de 2023.


PARENTE, Letícia. In, 1975. Disponível em: <https://vimeo.com/120480939>. Acesso em: 20 de julho de 2023.


PARENTE, Letícia. Preparação I, 1975. Disponível em: <https://vimeo.com/119148500>. Acesso em: 20 de julho de 2023.

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