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Olhe para o Lado

“Eu de Você”, de Denise Fraga, propõe um exercício de empatia para seus espectadores.


Eu de Você (2019) é a primeira peça solo interpretada pela atriz Denise Fraga. O texto é inédito: foi construído a partir de relatos selecionados após uma chamada feita no jornal e nas redes sociais — as histórias, contadas por pessoas de diversos cantos do país, foram selecionadas e organizadas dramaturgicamente por uma equipe de dramaturgos, sendo que o texto final foi redigido por Rafael Gomes, Luiz Villaça (que também assina a direção) e a própria atriz. Por meio da execução deste artifício, o monólogo pode ser colocado como uma das melhores obras do Teatro Contemporâneo produzidas atualmente.


Segundo o crítico e curador de Arte, Nicolas Bourriaud, em seu ensaio A Forma Relacional (2009), a Arte Contemporânea cria modelos de sociabilidade (um “domínio de trocas”, uma situação de relações) mostrando para a sociedade novas formas de relacionamento, novas formas de vivência. Ele afirma que “a Arte é um estado de encontro fortuito” entre duas pessoas, ou entre uma pessoa e um objeto (artístico). “Uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o ‘encontro’ entre observador e quadro, a elaboração coletiva de sentido”. É isto que ele chama de forma relacional: quando a Arte Contemporânea pega essas possibilidades de encontros fortuitos e torna-os permanentes (o que o artista faz é dar forma para aquilo, no sentido de preservar). Ele diz que “a essência da prática artística residiria, assim, na invenção de relações entre sujeitos; cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum […]”.


Quando Denise se coloca como mensageira de outras pessoas, o que ela faz é promover um encontro entre o público e as pessoas que nos emprestaram suas histórias. Temos acesso às dores e às alegrias de pessoas que, em outros contextos, jamais seriam ouvidas: seja uma mulher presa em uma rotina estafante, um psicanalista profundamente movido por algo que sua paciente disse, um homem homoafetivo, uma mulher negra ou mesmo uma professora aposentada que reencontra um ex-aluno anos depois.


Ela potencializa este encontro ao contar também suas próprias histórias: anedotas sobre seu pai (um homem que ama cantar) ou mesmo a de sua mãe (uma exímia nadadora). Desde que atuou em A Alma Boa de Setsuan (Der gute Mensch von Sezuan, 1941), de Bertolt Brecht (1898–1956), em 2008, todas as peças de Denise começam com o elenco recebendo o público na entrada da sala de espetáculo — em Eu de Você, ela leva este contato à última potência ao realizar cenas inteiras na plateia: pedindo para membros do público lerem uma das cartas enviadas ou mesmo a participarem das cenas. O cenário, extremamente minimalista, fecha as entradas das coxias obrigando a atriz a passar o tempo inteiro no palco e com o público; a obrigando a começar e encerrar o espetáculo na plateia.


Ao fazer isto, a artista é tirada de um pedestal e colocada de igual para igual com os espectadores: por meio do olho no olho, Denise apela para nossa cumplicidade. Em determinado momento da peça, diz:

“Eu confio no Teatro. Olha nós aqui nesse pacto de foco comum. Se alguém aqui ainda duvida, não acredita que estamos interligados, vai sair daqui essa noite com a certeza de que, pelo menos, uma coisa nos une: essa noite. Essa noite de silêncio compartilhado. Eu confio no Teatro. Eu confio no Teatro!”

Denise Fraga em Eu de Você (Imagem: Divulgação/Cacá Bernardes)


Quando negocia com o seu papel de intérprete (uma mensageira) ao mesmo tempo em que não abre mão de ser ela mesma, Denise põe em evidência a característica mais potente das artes dramáticas: sua capacidade de gerar empatia. Dessa maneira a atriz dá forma ao nosso encontro fortuito. É impossível não se encantar com as pessoas maravilhosas que estão em cena (por meio de suas histórias) ao lado da atriz. Constantemente nos é pedido para que olhemos para o lado e prestemos atenção no que o outro tem a dizer. Como relata o personagem do psicanalista na peça:

“Se cada um de nós ouvisse dentro de si o que o companheiro de experiência, o que a gente reverberava um no outro por conta da força daquele imprevisto.”

Fazendo uso de sua técnica de atuação primorosa, Denise apela pela nossa empatia: a peça firma todas as histórias nos pilares do Amor (que todo mundo deveria ter). Eu de Você nos propõe uma nova maneira de viver, de se relacionar: basta que a gente, honestamente, preste atenção no outro.


Por fim, Borriaud admite em seu ensaio que a obra de Arte não é capaz de mudar o mundo, afinal não é capaz de atingir a todos (seja por estar presente em um único lugar, e/ou por um período determinado de tempo; seja porque nem todos irão compreendê-la) — esse é o dilema da micropolítica. A Arte Contemporânea não se propõe a ter alcance universal, mas a trabalhar onde cada artista é capaz de atingir, dentro de sua alçada. Ainda assim, é possível que a experiência proposta pela artista cause um impacto positivo no espectador: a Arte não é capaz de mudar o mundo, mas é capaz de mudar (a noite de) outra pessoa.


Ou, como proposto por um dos personagens da peça: “Não é uma cura, nunca seria. Mas é uma alegria!”.


Denise Fraga em Eu de Você (Imagem: Divulgação/João Caldas)


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REFERÊNCIA

BOURRIAUD, Nicolas. A Forma Relacional. In: Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 15 a 33.


NOTA

Esse texto foi publicado originalmente no blog pessoal de pedro a duArte em 2 de novembro de 2019, em ocasião da primeira temporada paulistana do espetáculo realizada no Teatro Vivo.


SERVIÇO

Eu de Você — Teatro TUCA (R. Monte Alegre, 1024 - Perdizes, São Paulo)

Sexta às 21h, sábado, às 20h e Domingo, às 17h

Ingresso: Sexta-feira, R$60,00 (inteira); sábado e domingo, R$100,00 (inteira) — disponíveis na bilheteria do teatro ou no Sympla;

Temporada: até 10 de dezembro

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