Colaboradores da Revista Galérica analisam o filme de Walter Salles
Enquanto os brasileiros aproveitavam a segunda noite de Carnaval, dia 03 de março, o cineasta Walter Salles e a atriz Fernanda Torres faziam história ao trazer para casa o primeiro Oscar recebido pelo Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional. O longa-metragem Ainda Estou Aqui (2024) também concorreu na categoria de Melhor Atriz, sendo Fernanda a segunda atriz brasileira a ser indicada, e também na categoria de Melhor Filme, marcando a primeira vez de uma obra brasileira nessa categoria.
A vitória do Oscar, por si só, já é um motivo de celebração. Ao mesmo tempo, desde sua estreia no Festival de Veneza, Ainda Estou Aqui teve uma recepção calorosa tanto da crítica internacional como do público brasileiro. O filme recebeu a Osella de Ouro de Melhor Roteiro em Veneza, além do prêmio de Melhor Filme Internacional do Festival Internacional de Cinema de Palm Springs; o Prêmio do Público no Festival de Roterdã e o Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-Americano, para citar alguns dos internacionais.
Em homenagem a este filme que trouxe tanto orgulho ao Brasil e que mostrou o cinema nacional ao mundo, os colaboradores da Revista Galérica se reuniram para escrever apreciações sobre o longa-metragem. Leia a seguir:
ARTE E REPARAÇÃO, por José Anderson Paixão
Volto à tarde em que fiquei impressionado ao ver a língua portuguesa sobreposta numa bela filmografia em Ainda Estou Aqui, longa protagonizado por Fernanda Torres e Selton Mello. A história se desenrola durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985) e baseia-se no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que aborda o desaparecimento de seu pai, o engenheiro civil e ex-deputado Rubens Paiva (1929-1971). O azul dá lugar ao cinza, o sorriso dá lugar ao cenho fechado e a alegria dá lugar à angústia. Eunice Paiva (1929-2018), a mãe da família, precisa seguir com a criação de seus filhos enquanto processa o luto e a indignação pelo sumiço repentino do marido.
A harmonia da família Paiva era dissonante aos anos de chumbo: eles eram alegres, davam festas, dançavam na sala de estar e recebiam muitos amigos. A casa era uma espécie de oásis preenchida de afetividade em que pouco importava a política estabelecida no Congresso, dela se falava baixinho e em locais reservados para não estragar a atmosfera ou preocupar as mulheres e crianças. Até o dia em que os capachos da ditadura tocam o telefone, batem à porta e levam consigo um dos principais alicerces na constituição daquela vida cotidiana. As cenas de despojamento e familiaridade gravadas numa Super-8 são substituídas pela tensão: a luz é aplacada, somos convidados à escuridão física e metafórica em que vivia aquela família sem respostas.
Ao estabelecer paralelos com o Brasil atual, sinto o meu pescoço tensionar. Parece que sempre há um inimigo bélico à espreita para ceifar nossa liberdade, que se estabelece num paralelo entre inerente e frágil; os nostálgicos do período autoritário rondam a Câmara e o Senado, tentam voltar ao Palácio da Alvorada. Sonham com um novo governo militar pós-moderno e golpeiam com termos vulgares tudo o que consideram atípico e diferente. Por isso, é necessário que a memória coletiva não se perca e que se possa cantar, ler e assistir aos relatos para rechaçar despotismos e demagogias.
Tenho problemas com a arte-espelho e com o uso excessivo de uma estética reparadora. Despejo críticas ferrenhas aos que fazem da arte um ativo para curar suas feridas e trazer conforto. A obra de arte contém multitudes e esferas processuais que não podem se conter unicamente na experiência do “eu”; ainda mais se partimos do pressuposto de um “eu” mutável num tempo mutável. Entretanto, a impressão que tenho é que o filme de Salles tenta remediar, por meio de uma arte muito singela e bem executada, a falha de memória coletiva que acomete a grande parcela dos nossos contemporâneos.
Ainda estou aqui se apresenta de forma avassaladora, pois se comunica com o telespectador de igual para igual. Na sutileza dos dias e na potência da fala, a obra é capaz de causar empatia e espelhamento em quem assiste. E ao final, quando as imagens da família Paiva surgem na tela junto aos créditos, o que vem à mente é a vontade de estar aqui fazendo algo de significativo para quando não estiver mais. A vontade de estar aqui e agora, para nunca mais retornar ao passado.
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UMA HISTÓRIA DE FANTASMA, por Luca Scupino
O que mais dizer sobre Ainda Estou Aqui além de tudo que já foi dito, escrito, debatido e contra-debatido? Gostando ou não do filme, ninguém em sã consciência negaria que estamos diante de um evento histórico dentro do cinema brasileiro, que abre discussões sobre os caminhos tomados pela indústria desde os anos 1990 com o Cinema da Retomada (e algumas de suas velhas questões sendo ressuscitadas), e as possibilidades para o futuro do audiovisual nacional. Seu sucesso de bilheteria e suas indicações ao Oscar são de um significado histórico que, talvez, sequer estivéssemos preparados para lidar; tendo sido o cinema brasileiro vítima de tantos ataques ao longo dos últimos anos. Para além de uma campanha de marketing extremamente efetiva, há de se perguntar o motivo desse sucesso e a razão pela qual o filme pode obter tamanho engajamento orgânico por parte de seus espectadores, que em clima de Carnaval transformaram a obra em motivo de comemoração e orgulho nacional.
Ainda Estou Aqui é, sem dúvida, um elefante branco dentro do conjunto de filmes brasileiros de sucesso de crítica lançados nos últimos anos. Algo o faz, evidentemente, se destacar entre os demais. O quê? A meu ver, a habilidade de lidar com uma certa unidade que parecia antes esquecida ou deixada de lado pelo cinema brasileiro: a família. Se terminamos de assistí-lo emocionados, isto é porque algo no começo nos cativa: como o filme toma seu tempo para nos habituar na residência Paiva, como ele captura com sentimento o cotidiano da família e a vida que circula nas festas e reuniões com amigos dentro daquelas quatro paredes. Uma casa cheia, aberta e, sobretudo, uma família imperfeita que se ama. Filmes como O Quarto do Filho (2001), de Nanni Moretti, bem ensinaram: quer construir uma tragédia? Primeiro faça o público se apaixonar por seus personagens. E o amor está inscrito nas paredes e nos objetos: a camisa do pai, o dente de leite da filha mais nova, os discos e rolos de Super-8 da mais velha; enfim, vestígios de que, para parafrasear o título, alguém esteve ali.
Fica ressoando em minha cabeça o que vem depois que o filme acaba, nos créditos: uma câmera em movimento, percorrendo os espaços vazios daquela casa que antes parecia tão plena de vida. E a sensação de que este vazio contém muito dentro de si; que a família Paiva sempre estará lá em uma espécie de presença fantasmática. Igual à memória de Rubens, presente na ausência, o luto é nada mais que isso: uma forma de manter vivo algo que se foi, etapa necessária e direito retirado da família Paiva pela violência de Estado e o tratamento dado às famílias dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira.
Historicamente falando, o fato de se tratar de uma família burguesa e influente politicamente não foi o suficiente para poupá-la da tragédia — e o olhar que não se volta à luta de classes, ao contrário de enfraquecer o filme ou apontar de forma essencialista às origens do próprio cineasta, é algo que o fortalece na experiência do espectador, pois traz a consciência de que ninguém está a salvo das garras do fascismo.
Por isso, nada mais apropriado que o filme nos privar de ver Rubens e de saber de seu desfecho depois que ele desaparece, nos colocando na pele de sua família, aprendendo a conviver sem respostas (ou sem a confirmação de uma resposta). Se sua falta é sentida, isto é porque sua aparição é também brilhantemente preenchida pela atuação de Selton Mello na primeira parte do filme, de forma que todo o desenrolar da obra parece manter viva a presença de Rubens Paiva na casa da família, mesmo que em sua virtualidade. Aí chegamos em um ponto chave para compreender Ainda Estou Aqui, e onde reside seu verdadeiro potencial político: trata-se de um filme sobre o que vemos, é certo, mas é ainda mais sobre a necessidade de criar histórias para aquilo que não vemos, para a lembrança que foi apagada pela política autoritária da ditadura. Como melodrama que é, essa lembrança só pode ter valor político se antes é reconhecida sua natureza privada; a tragédia de uma família como tragédia de um país.
É nesta relação entre virtualidade e presença que o filme mantém vivas as memórias de Rubens e Eunice Paiva, como duas almas vagando pela narrativa, corporificadas por duas grandes atuações, que dão rosto não à história de violência protagonizada pela ditadura militar, mas às vidas destruídas de uma família que se ama. A tragédia oculta do filme (e talvez aquela a que o título se refere) não é a de Rubens, mas a de Eunice: esta fortaleza que resistiu bravamente como mãe de cinco e ativista política, e que em seus últimos anos é condenada a perder a memória — a sua forma mais íntima de resistir aos horrores que a História lhe infligiu. Por mais excessivos que pareçam os muitos finais do filme, era necessário que ele terminasse ali: 2014, quando a Comissão da Verdade no governo Dilma Rousseff reconhece os crimes de Estado cometidos pela ditadura militar contra seus cidadãos. É neste momento que a memória antes privada se torna também coletiva, movimento que o filme procura também realizar ao reavivar as histórias inscritas nas quatro paredes da casa dos Paiva, presentificando seus ausentes. Como um teatro de sombras.
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CANÇÃO E SILÊNCIO, por Pedro Penteado
Quem assistiu ao Oscar deve ter percebido como a trilha musical induz nossas impressões; principalmente naquele trecho do in memoriam, onde tocaram a Lacrimosa de Mozart (1756-1791), uma marcha fúnebre. As músicas têm um cunho emocional e também contextual, podendo transformar uma viagem de ônibus em um ato de coragem ou até mesmo uma situação de autoflagelo. Mas seu significado também pode mudar conforme o uso dela, como foi o caso da obra de Mozart que acabamos de citar. De tanto ser usada na internet em um contexto épico e de perdição, longe do seu contexto primário, o tom dela no in memoriam do Oscar soou sinistro para alguns, apesar de ser adequado para o momento.
Por esse e outros motivos, devemos valorizar o trabalho de escolher as trilhas musicais de um filme, o que o editor Affonso Gonçalves, os roteiristas Heitor Lorega e Murilo Hauser e o diretor Walter Salles fizeram com cuidado ímpar. As escolhas não anacrônicas, com um manejo para cada personagem, tecem um campo musical que ajuda a dar cor e intensidade ao longa-metragem Ainda Estou Aqui. O que seria da festa da família Paiva se Rubens não colocasse Take Me Back To Piauí (1972)? A gravação em Super 8 de Veroca em Londres diria tanto sem a versão dos Mutantes da música Baby (1969)? Sem falar, é claro, dos créditos finais com É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo (1971), de Tremendão — que se tornou a música símbolo do filme.
Ainda Estou Aqui consegue trabalhar uma sonoridade pouco óbvia, fugindo dos clichês da Tropicália e da MPB da época, dos chavões sempre usados (com exceção de Baby), como Aquele Abraço (1969), de Gilberto Gil, e traz alternativas bem pensadas: como As Curvas da Estrada de Santos (1969), de Roberto Carlos, uma época que marcava a transição do rei da Jovem Guarda para sua era romântica; época de Como Dois e Dois (1971). Uma forma de contar a história do Brasil pela música, pois, além de ser muito popular, Roberto era visto como capacho dos militares, chegando a receber honrarias pelos mesmos, ao mesmo tempo em que era respeitado por seus contemporâneos tropicalistas. São por esses caminhos que temos uma construção do país e dos personagens à parte do roteiro.
O longa consegue, por meio das músicas preferidas de cada personagem, fortalecer a personalidade de cada ume torná-los mais memoráveis. Tome como exemplo a Veroca (interpretada por Valentina Herszage), que ouve Gal Costa, Mutantes e tudo que há de fresco na Tropicália, enquanto Zezé (Pri Helena), ouve o que a rádio toca, ou seja, Roberto Carlos e Tim Maia — muito bem colocados no filme com Festa do Santo Reis (1971). Toda essa paisagem musical ajuda a compor a casa da família Paiva como um lugar cheio, vivo e barulhento. Até o momento de sua prisão, onde o silêncio impera e uma outra trilha surge.
Esse entremeio silencioso, que começa no sumiço de Rubens e perdura durante o interrogatório de Eunice, só se quebra quando a família vai para São Paulo, onde deixamos de lado as trilhas convencionais para algo mais formal, com a faixa The Fighter, do islandês Jóhann Jóhannsson, famoso pelas trilhas elaboradas para os filmes A Teoria de Tudo (2014) e A Chegada (2016). A música foi feita originalmente para o filme Por Amor, dirigido por David Hollander em 2009.
Ainda Estou Aqui continua e se resolve para culminar nos créditos, que atravessam a casa vazia da família Paiva ao som de É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo. Este é um dos momentos mais bonitos do longa, pois nos lembra daquela casa cheia de gente e barulho, das músicas e danças, enquanto a guitarra de Lanny Gordin nos impacta com o vazio que ela se tornou. O choque e o horror que a ditadura é capaz de causar, mas também com uma mensagem motivadora pela letra. A música é peça fundamental no universo do filme.
Muitas das obras que tocam no longa, inclusive, são fruto da produção de Manoel Barenbein, responsável pela coletânea da Tropicália, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros. Aos interessados, recomendo a recente entrevista de Barenbein feita por André Barcinski, disponível no canal de YouTube do jornalista.
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FERNANDA TORRES SEMPRE ESTEVE AQUI, por Pedro A. Duarte
Fernanda Torres se tornou conhecida pelos brasileiros principalmente pelos seus trabalhos cômicos na TV, em especial os seriados Os Normais (2001 - 2003), de Alexandre Machado e Fernanda Young, e Tapas & Beijos (2011 - 2015), de Cláudio Paiva. Assim, quando perguntada sobre a oportunidade de interpretar Eunice Paiva, Fernanda afirmava que Walter Salles a teria salvado: a própria atriz dizia que aquela era a primeira vez em que teve a oportunidade de fazer um drama, quiçá uma tragédia. É bem verdade que Fernanda é conhecida por sua comicidade, mas se engana quem pensa que ela tenha sido apenas uma atriz cômica: Fernanda Torres sempre esteve aqui fazendo dramas e até obras experimentais. Então, neste texto, quero relembrar a trajetória da atriz, em especial seus trabalhos no teatro.
Filha de Fernanda Montenegro e do ator e diretor teatral Fernando Torres (1927-2008), Fernandinha sempre teve contato com os palcos e com o ofício da atuação. Aos 13 anos de idade, ingressou para o Tablado, uma escola tradicional de teatro no Rio de Janeiro comandada por Maria Clara Machado (1921-2001). Sobre a presença de Fernandinha no curso, Maria Clara teria confidenciado a Thereza Miranda (também amiga de Montenegro): “Aquela ali. É filha da Fernanda [Montenegro]. Coitada, quer ser atriz”.
Ser filha de Montenegro certamente foi um desafio no início de sua carreira: como se distanciar da figura de sua mãe e também comprovar seu talento? Ao mesmo tempo, o fato de seus pais já estarem inseridos no meio artístico também ajudou o início da trajetória de Fernanda. A vivência desde pequena com artistas do meio teatral serviu de estímulo para a escolha da profissão e também abriu portas. No início de 1980, ao pegar uma carona com o ator Cláudio Marzo, Fernandinha conheceu o cineasta Walter Lima Júnior, que na época estava procurando uma jovem atriz para interpretar a protagonista de seu próximo longa-metragem. Com isso, em 1983, ela fez sua estreia nos cinemas interpretando a personagem titular de Inocência, filme adaptado do romance de Visconde de Taunay.
Naquele mesmo ano, aos 18 anos de idade, ela também interpretou Cordélia em uma montagem de Rei Lear, uma tragédia de William Shakespeare - a filha mais nova do personagem titular era responsável por criar uma cisão no reino que levaria à morte de Lear e de suas filhas. Sua personagem aparecia apenas nas primeiras cenas do espetáculo, para voltar no final depois de algumas horas; então ela aproveitava esse tempo para ir a um fliperama, jantar em casa ou sair com seu namorado na época, o jornalista Pedro Bial.

Fernanda seguiu intercalando a atuação em filmes e no teatro no decorrer dos anos. Foi com Eu sei que vou te amar (1986), de Arnaldo Jabor, que ela se tornou a primeira atriz brasileira a ganhar a Palma de Ouro de Melhor Atriz durante o festival de Cannes, aos 20 anos de idade. Outra obra interessante dessa primeira fase de sua trajetória é o filme Kuarup (1989), de Ruy Guerra. Longa-metragem no qual a equipe foi a campo e se embrenhou pelas florestas do Planalto Central durante dez semanas, onde foram alojados ao lado das tribos do Alto do Xingu. Ela narra esta aventura no ensaio “Minha cerimônia do adeus” publicado em abril de 2012 pela revista piauí e, posteriormente, em seu livro de ensaios Sete Anos.
Também em 1989, Fernanda interpretou Orlando, personagem de Virginia Woolf, em uma adaptação teatral dirigida por Bia Lessa. Ela contracenava ao lado de Julia Lemmertz, Claudia Abreu, Marcos de Oliveira, Dany Roland e Otávio Müller. O espetáculo viajou pelo país e foi bastante celebrado. Nele, Fernanda beijava suas colegas de cena e aparecia nua para os agradecimentos.

Se, ao contrário do que se imaginaria, Orlando não havia gerado polêmicas, o próximo espetáculo protagonizado pela atriz, The Flash and the Crash Days (1991), de Gerald Thomas, foi um acontecimento. Pela primeira vez, ela contracenou com sua mãe nos palcos. Trata-se de uma peça experimental que mistura o terror e a comédia, cuja trama gira em torno do embate entre duas figuras femininas, representando um conflito geracional. O que causava espanto eram as cenas de masturbação protagonizadas por Fernandinha, além do momento em que ela simulava um ato sexual junto com Montenegro. O espetáculo chegou a ser apresentado em diversos países da Europa, além de realizar uma turnê pelos Estados Unidos incluindo uma apresentação no Lincoln Center.

Em 1995, Fernanda participou de mais uma peça polêmica dirigida por Gerald Thomas: Don Juan, escrita pelo jornalista Otávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo. O espetáculo era protagonizado por Ney Latorraca e o enredo colocava Don Juan na figura de um ginecologista impotente - no decorrer da comédia, ele se deparava com uma série de figuras femininas. Durante as apresentações no Teatro TUCA, dos 700 espectadores que lotaram a plateia, 100 chegaram a sair no meio. A peça era finalizada em meio a aplausos e vaias raivosas.
Este espetáculo não foi o único “fracasso” de Fernanda. Em 1996, ela fez parte da montagem Da Gaivota, uma adaptação do texto de Tchekhov que suprimiu parte de seus personagens. A atriz interpretou Nina e contracenava com sua mãe (no papel de Arkadina), Matheus Nachtergaele (Trepliov) e Celso Frateschi (Trigorin), Nelson Dantas (Sorin) e Antônio Abujamra (Chamráiev). Neste espetáculo, elas não interpretaram mãe e filha, mas uma grande atriz do teatro russo e uma jovem aspirante no ofício. O espetáculo foi produzido pelas Fernandas e marcou a primeira direção teatral de Daniela Thomas. Em entrevista para o jornal Folha de S.Paulo, o repórter caracterizou Nanda como uma atriz cômica, ao que ela respondeu que “Cada ala acha uma coisa. [...] Nem eu sei o que eu acho de mim”.
Quando Nanda conheceu o cineasta Eduardo Coutinho no ano de 2003 em Sundance, ela lhe contou sobre esta montagem e confessou que a melhor apresentação do espetáculo foi um ensaio geral, ao que ele teria lhe respondido: “Tchékhov não foi feito para estrear.” A anedota está registrada em um depoimento escrito por Fernanda e publicado no jornal Folha de S.Paulo em 04 de fevereiro de 2014, em decorrência do falecimento do cineasta. Anos depois, o cineasta a convidaria para participar do documentário Jogo de Cena (2007), no qual atrizes reproduziam fielmente relatos de mulheres comuns. O documentário intercalava os relatos com suas reproduções (ou “interpretações”) e Fernanda foi a única atriz incapaz de ir até o fim com a experiência — por diversos fatores, ela não conseguia dar conta da vida daquela mulher que deveria representar. No fim das contas, essa incapacidade foi o que acabou por oferecer a chave de leitura do dispositivo deste documentário, que flerta justamente com a performance e a captura do real a partir do momento em que se está diante de uma câmera.

Na televisão, entre os anos 1990 até 2018, os trabalhos principais de Fernanda Torres foram as comédias – em especial Os Normais e Tapas & Beijos, já citados anteriormente. Com a retomada do cinema brasileiro, Fernanda demorou um pouco mais para realizar sua guinada cômica. Em 1996, protagonizou seu primeiro filme em parceria com Walter Salles, Terra Estrangeira (filme co-dirigido por Daniela Thomas). Seguido de O que é isso, companheiro? (1997), filme sobre o sequestro do embaixador dos Estados Unidos realizado por guerrilheiros durante a ditadura – o longa chegou a concorrer ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
Já no teatro, a trajetória de Fernanda também se direcionou ao humor. Em 2000, ela entrou em cartaz ao lado de Debora Bloch com a comédia Duas Mulheres e um Cadáver, de Patrícia Mello, sob a direção de Aderbal Freire-Filho. Na trama, duas amigas se encontravam no consultório de um psicanalista, marido de uma e amante da outra, assassinado logo no início da ação; a partir daí, a peça girava em torno de descobrir qual das duas teria assassinado aquele homem. É interessante reparar em uma entrevista concedida pelas atrizes que foi realizada por um certo Marcelo Rubens Paiva para a Folha de S.Paulo. Ele passa pela trajetória de ambas no teatro e caracteriza Fernanda como uma atriz “densa”, muito devido aos seus trabalhos em Orlando e em The Flash and the Crash Days.

E eis que Fernanda foi convidada por Domingos de Oliveira para estrelar em um monólogo que adaptava A Casa dos Budas Ditosos, romance de João Ubaldo Ribeiro sobre o pecado capital da luxúria. A trama era bem simples: uma baiana de 68 anos de idade enviou diversas fitas ao escritor narrando sua vida, dando destaque especial todas as experiências sexuais que ela teve, com a intenção de que quem fosse ler o livro tirasse proveito de seus relatos e aprendesse a viver sua sexualidade de maneira plena. O espetáculo estreou em 2003 e foi celebrado por público e crítica, rendendo um Prêmio Shell de Melhor Atriz para Fernanda, apesar de seu teor extremamente pornográfico. Volta e meia, Nanda retorna aos palcos com A Casa dos Budas Ditosos.
Ela relata em um ensaio que escreveu sobre Ubaldo para o livro Sete Anos (Companhia das Letras, 2014) que, quando a peça estreou em Salvador, Ubaldo se mostrou incomodado que as chamadas para a peça que apresentavam o espetáculo como uma “comédia”: com muito tato, ele apontou que Fernanda havia perdido a humanidade da personagem e estava buscando o riso fácil; ele pediu que a produção parasse de se referir ao texto daquela forma. Ela admitiu no ensaio: “A cobiça e a mecânica da repetição traíram a grandeza do homem. Nunca mais fui chula, nunca mais.” E, de fato, ao compreender a seriedade com a qual a baiana misteriosa relata a sua vida, ao interpretar a personagem com seriedade é que o humor se revela.

O solo aproximou Fernanda de Ubaldo e os dois passaram a se corresponder. O escritor baiano se tornou uma espécie de mentor de Fernanda e este contato motivou a atriz a se tornar uma escritora. Ao ensaiar o espetáculo, ela redatilografou o texto inteiro como um exercício de memorização. “O treino revelou a gramática, a música que emana dele, e me abriu as letras. Com o tempo, perdi o medo de lhe escrever e-mails, coisa que, no início, se reduzia a magras interjeições”.
O treino deu bons resultados, em 2006, ela foi convidada pela a revista piauí para publicar seu primeiro ensaio, intitulado “No Dorso Instável de um Tigre” no qual ela explora o conceito de stage-fright, o medo de estar no palco interpretando um personagem. Seu ensaio inaugural explora as diversas situações nas quais seus colegas de profissão lidavam com suas angústias antes de entrar no palco, além de relatar os fracassos de Don Juan, Da Gaivota e um espetáculo “work-in-progress” apresentado pela Companhia de Ópera Seca na Alemanha, intitulado Saints and Clowns. Depois disso, Fernanda assumiu uma coluna quinzenal na revista Veja Rio e uma coluna mensal na Folha de S.Paulo, e estreou no romance com Fim (2014), que foi traduzido para sete países e adaptado como uma minissérie pela Rede Globo, em 2023. Seu segundo romance, intitulado A Glória e seu Cortejo de Horrores, foi lançado em 2017.
O último trabalho inédito de Fernanda no teatro ocorreu em 2009 (depois disso, ela só retornou em cartaz com A Casa dos Budas Ditosos). O projeto também foi sua primeira incursão como dramaturga e reuniu nos palcos a dupla de Os Normais no mesmo ano em que o segundo longa-metragem do seriado estreava nos cinemas. Intitulado Deus é Química, a comédia acompanhava a noite de um casal aguardando o motoboy de uma “pizzaria” que, a pedido do marido, vinha trazer 200g de “queijo ralado” (leia-se, maconha) enquanto, de frente para o apartamento deles, os traficantes entravam em um confronto armado com a polícia.
Ao observar a trajetória de Fernanda Torres podemos compreender o que levou a atriz a ser conhecida como uma comediante: não só seus trabalhos mais marcantes foram comédias, como também sua trajetória a levou a dar preferência para este gênero no decorrer do século 21. Ao mesmo tempo, o início de sua trajetória foi bem marcada por interpretações dramáticas, passeando até por tragédias e espetáculos experimentais. Assim, Ainda Estou Aqui não representa uma quebra com o estilo cômico de Fernanda, mas um retorno bem-sucedido às suas raízes no teatro.
Definir o estilo de Fernanda é uma tentativa tão complicada quanto definir o gênero de qualquer boa história contada por brasileiros, seja no formato de um filme, peça ou livro: somos um povo que ama comédia, mas também é dado a exaltar os sofrimentos da vida; andamos na linha fina entre o cômico e o melodramático. Então, em vez de tentar definir Fernanda como atriz, volto para a entrevista que ela concedeu a Marcelo Rubens Paiva e deixo que ela mesma se resolva:
Uns dizem que tenho mais tendência para a comédia, como se me acusassem de não ser densa. Agora, você me diz que eu não sou comediante. Nunca vão chegar a uma conclusão. Acho que sou tragicômica – FERNANDA TORRES
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