Acabei de fazer 25 anos: tenho um diploma de ensino superior e histórico de gonorreia. O som estridente de um grilo obstruía meus ouvidos enquanto eu tentava urinar no banheiro dos fundos na noite anterior. A dor transpassava minha uretra enquanto eu clamava a Deus por um sono eterno e letárgico, cada vez mais perto da síncope. Só consigo pensar na dádiva que seria caso a minha vida tivesse seus rastros apagados conforme meus dejetos no sistema de esgoto abaixo do solo, misturada e diluída a outros compostos.
As salinas na parede ao lado do vaso sanitário se pareciam com as erupções que o papiloma vírus humano imprime na pele do infectado; visualizo na cartilha que acabei de receber da unidade de pronto atendimento. As imagens me causam pânico, fui acometida por todas as doenças venéreas num milissegundo. Sou hipocondríaca e não nego; ou melhor, sou ávida por criar paralelismos que nunca vão se concretizar num plano real. Desde menina, deduzo e crio variadas formas de equalizar sensações porque tenho medo do choque; é uma manifestação da ansiedade generalizada e um mecanismo de defesa que procura me resguardar das verdades que me causam dor.
E a verdade é que agora estou fodida, com uma puta agulha jorrando ceftriaxona na minha veia e uma velhinha gemendo de dores na lombar ao meu lado. Observo todos esses rostos: negros, brancos, com marcas de sol e linhas de expressão, todos eles merecem piedade frente às mazelas que lhe foram impostas, mas eu não: não mereço misericórdia por minhas aventuras sexuais indecentes.
Ou mereço? Sinto que faço um julgamento injusto de mim mesma ao usar a doença como um atestado de imoralidade. Não sou amoral, muito menos moral. Eu não sou coisa alguma e prostrada de dor horas atrás não me sentia sequer humana. O incômodo físico tem o poder de nos destituir do esboço que rege a nossa persona. De nada vale qualquer certificação de inteligência ou requinte frente à incapacidade de se manter sã, por isso a vergonha e o medo: por me escapar-me e, em contrapartida, acabar sendo esse ser gelatinoso que desesperadamente necessita de ajuda.
Imagino quem foi o filho da puta responsável pela magnanimidade do meu dia enquanto fantasio a agulha rasgando a superfície da minha pele. O movimento brusco resultaria no pânico latente da minha carne ejaculando um líquido escuro e viscoso; não consigo abrir os olhos por agora. Não pode ter sido o André, transei com aquele patinho feio por pena e nenhuma mulher se submeteria ao micropênis de um homem problemático na crise dos trinta, sem amigos e família, apenas dois gatos e livros mofados. O Carlos é uma opção mas fico imaginando se todo aquele discurso sexual inibido não tinha o objetivo de me impressionar; ele é pomposo e se finge de rodado, mas sei que no fundo tem depressão e se apega a qualquer uma que lhe dê migalhas de atenção. Só pode ter sido o Luís, mantemos relações sexuais constantes e eu até gosto dele mas, percebo que a firmeza das suas palavras não condizem com a dos seus atos, ele é um homem incapaz de estar em qualquer situação da qual não vá se beneficiar ou nutrir uma espécie de prazer sádico.
Nesse ínterim de pensamentos infrutíferos ouço a voz da enfermeira dizer que vai remover o cateter. Abro os olhos e me deparo com o seu rosto oblíquo, ela segura o meu braço, rasga o esparadrapo, o cheiro de álcool irrompe em minhas narinas e eu recebo alta. Jogo fora a pulseira em verde neon com “MARIANA” escrito em caixa alta.
Enquanto atravesso o corredor vejo ossos envoltos por massa rubra, expressões nauseantes, manchas de sangue, bisel de agulhas, idosos em cadeiras de rodas e outras imagens que se misturam num emaranhado de sentidos. Quando chego ao estacionamento da unidade, o calor de setembro incendeia toda a minha pele e sou acometida por lágrimas, me sinto só e perdida, não sei para onde vou e tento chamar um táxi. Já no carro, ensaio uma mensagem de texto pro Luís expondo o embaraço que ele me causou: “Me liga, precisamos conversar!” ou “Preciso te contar algo sério. Me liga!”.
Preciso delatar a minha doença, a nossa doença, que não é só minha, que fez o meu corpo ser público e suscetível, que desestabilizou o seu funcionamento e esmagou qualquer engendragem sobre a minha independência. Não acredito mais na saúde: ela é tão duradoura quanto a vida de um inseto que nossos pés esmagam de maneira peremptória. A saúde é aquela joia que o ladrão furta de supetão e, elevados ao estado da mais profunda paranoia, com medo de definhar, com medo do Gregor Sansa à espreita, passaremos a vida nos amedrontando do tornar-se abjeto.
Sinto o pulsar das ruas e das veias, não conheço essa parte da cidade: as pontes e calçadas me soam estranhas. A dor parece se esvair do meu corpo me causando a sensação de estar entre a cruz e a espada; aplacada, mas não vencida. Observo os homens e mulheres em maratonas, o suor escorre e os músculos contraem. Percebo que toda performance de vida tem por objetivo sinalizar o distanciamento da vulnerabilidade dos corpos. O homem civilizado foge da doença, da nudez, da peste, do sexo e do sangue. E no entanto, ele é acometido pela doença, é enterrado nu, se maldiz com a chegada da peste, fode pra procriar e se engasga no próprio sangue.
Body Tracks (1974), Ana Mendieta
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