top of page

Tranquilidade borbulhante

A partir da leitura de O Ano do Macaco, de Patti Smith, ensaio reflete sobre o que fazemos quando experimentamos o momento presente


Durante as férias, passei quase um mês sem entrar nas redes sociais e tentando me manter o mais longe possível do celular. Uma das minhas companhias nesse período foi o livro O Ano do Macaco (Year of the Monkey, 2019), de Patti Smith, uma espécie de diário ou livro de memórias, costurado por reflexões devaneantes sobre o envelhecimento, a perda, os sonhos, o afeto e a solitude. O livro também aborda mudanças dolorosas e as ondas conservadoras que assolaram os Estados Unidos em 2016, ano marcado pelas eleições estadunidenses que resultaram na vitória do extremista de direita Donald Trump. 


Ao longo dos últimos três anos, venho me aproximando de Patti aos poucos, conhecendo seus livros, sua vida, suas ideias e suas músicas em doses homeopáticas regidas pelo acaso. Me encantando, me identificando, me revoltando e até me entediando com suas colocações, descrições, dúvidas e “tempos mortos”. Patti Smith é cheia desses momentos em que nada acontece, proporcionados muitas vezes pela distância do celular e da internet, que a autora parece ter prazer em cultivar: no início de O Ano do Macaco, seu celular chega a descarregar e ela só se preocupa em carregá-lo semanas depois, deixando recados para amigos e família por telefones fixos que encontra no caminho. Semanas sem nem usar o celular! 


Convenhamos que parece impensável se contentar apenas com o presente. Desconfio, contudo, que uma vez desconectadas da urgência dos assuntos supérfulos e do excesso de informação, surgem momentos de tranquilidade borbulhante, em que há sempre uma percepção, um apontamento, uma lembrança, uma hipótese para nos acompanhar, inebriar, enraizar, direcionar. Esse livro parece se fazer nesses momentos, em que nem mesmo nos sonhos e nos devaneios há como fugir do presente. Em que não há como fugir nem disfarçar a vida. 


Esses dias longe das redes sociais me trouxeram essa perspectiva de disfarce, de distração, de engano até. Fiquei genuinamente surpresa ao perceber que não senti falta nenhuma do instagram; pelo contrário, fiquei bastante aliviada em não precisar acompanhar todas as atualizações sobre as férias dos meus amigos ou me manter atenta às páginas de notícias (ou seriam páginas de fofoca?). Me percebi enganada, ludibriada, convencida de que as redes aproximam e informam, sem realmente me preocupar com a qualidade dessas informações e conexões. Senti o quanto as redes, as mídias sociais, me distraem das coisas que me interessam, me alegram, me instigam, ao mesmo tempo em que disfarçam as coisas que me irritam e me chateiam; fazendo esse papel de mediação entre mim e a vida, me poupando e me privando.


É curioso pensar em engano a partir desse livro, porque são constantes os momentos em que não sabemos se o que Patti descreve é sonho, fantasia, lembrança ou o presente. Ao mesmo tempo, não somos enganados em momentos algum: tudo faz parte da percepção da artista e portanto faz parte da realidade. Uma realidade bastante concreta, ainda que devaneante. 


Esse caráter do concreto me instiga bastante. No meu último texto, afirmei acreditar que a fisicalidade, a materialidade tem poder sobre nós. O Ano do Macaco é um livro costurado pela materialidade; cheio de objetos e elementos físicos que acompanham e direcionam Patti, (seja no devaneio, seja na realidade) muitas vezes registrados em fotografias tiradas pela artista e reproduzidas ao longo das páginas: o caderno companheiro, a máquina fotográfica, as botas surradas, a areia vermelha de Ayers Rock, letreiros curiosos, a xícara do pai, as cadeiras Adirondack da casa do amigo dramaturgo Sam Shepard.


Duas passagens me chamaram a atenção por sua materialidade com tom de obsolescência e enraizamento. A primeira é o comentário sobre o “escasso suprimento de papelaria, suficiente para uma única carta” de um dos hoteis que Patti visita em sua jornada. Realmente, os hoteis costumam disponibilizar papel e caneta nos quartos. Acreditava serem para rápidas anotações, hoje possivelmente feitas durante reuniões online, mas a possibilidade de serem para cartas me pareceu muito mais interessante. Imagine que você está num hotel e precisa enviar uma carta a alguém; o que de tão façanhoso, potente, até urgente (apesar do tempo da carta, tenho a impressão que têm coisas que só a escrita dá conta) pode haver para contar que exija uma carta em pleno 2016 - ou 2024. Eu costumava trocar cartas com amigas nos meus primeiros anos em São Paulo (justamente por volta de 2016!). Compartilhávamos impressões cotidianas, singelas porções de realidade que juntas trazem mais graça para a vida. Lembro do prazer de partilhar essas pequenas percepções que têm mais importância para quem as conta, e que, aos poucos, formam quem somos. Gostava de escrever e gostava muito de ler o que minhas amigas tinham a dizer, percebendo suas transformações e complexidades a partir do que chamava seus olhares. 


A segunda passagem que me marcou também me remeteu a uma amiga. Trata-se dos presentes espontâneos que Sandy Pearlman, amigo e mentor hospitalizado no momento da escrita, costumava enviar a Patti, como quem diz “pensei em você”. A artista comenta como tinha a sensação de haver transmissões de pensamento entre eles com frequência. Transmissões que ele parece materializar com os envios. Bonito isso, dar presentes como forma de estar presente. Partilhar objetos para partilhar a vida, partilhar o mundo.


Recentemente também recebi em casa um presente espontâneo, simples e maravilhoso. Um cartão postal enviado por uma amiga de longa data e muito, muito querida, que em 2022, se mudou para nada mais nada menos do que a China. Ouvi um barulhinho e quando vi debaixo da porta aquele objeto que literalmente cruzou o mundo para me encontrar, dei um passo para trás, bambeei as pernas e tive a sensação de que meu coração precisou parar por um segundo para absorver aquele presente tão simples e tão absurdamente maravilhoso. Um presente que me enraíza no presente sempre que revisito aquele instante. Também tenho a sensação de transmissão de pensamento com ela e me sinto muito mais próxima dela agora do que quando morávamos apenas em estados diferentes. 


Postal enviado de Xian, “par avion”, para minha casa


Logo antes de se mudar, ela passou alguns dias na minha casa – a “uma semana em que moramos juntas”, como ficou conhecida – que foram fundamentais para que a transmissão de pensamento possa chegar além mares. Nesses dias, comemos, dormimos, lemos, falamos, sonhamos, trabalhamos juntas; cada qual no seu espaço, interferindo gentilmente na vida uma da outra. Esses dias me vieram à mente nos momentos em que Patti compartilha suas estadias na casa de Sam Shepard. Os hábitos de trabalho conjunto e individual, a presença indisfarçável e respeitosa do outro. 


Fico sempre encantada com as descrições de trabalho de Patti; curtas, naturais e perenes, como se o trabalho artístico fosse a coisa mais simples do mundo - apesar das pontuações de “longas horas” de foco ou dos rascunhos e esboços muitas vezes jogados fora. Considero Patti Smith, e acredito que parte da graça de lê-la venha daí, uma artista que gera muita identificação: ela assiste programas de TV sobre baleias por falta de coisas melhores para fazer, é teimosa, às vezes perdida, se coloca em situações um tanto duvidosas, tem ótimas ideias, mas raramente ideias geniais. 


Me inspiro na sensação de que seus livros são do começo ao fim - ou antes mesmo do começo e muito depois do fim - descrições de processo artístico-criativo; os “tempos mortos” que garantem uma abertura para o mundo e para si, os desvios no caminho que levam para onde precisávamos ir, a ternura e partilha com os amigos que ajudam a dar sentido às coisas, os textos e mais textos que se escreve no caderno e não temos ideia do que são ou para onde vão. As várias etapas que não são propriamente o trabalho artístico mas que são essenciais para que ele aconteça, e para essa longa cascata de pensamentos fazer sentido, elas costumam acontecer longe do celular - e em contato com a materialidade, defendo. 


Esses dias longe do celular tornaram palpável sua influência na dificuldade em se manter em processo, uma vez que autoriza a interrupção e facilita a distração - não só do trabalho, mas da gente, do mundo. De forma alguma quero me colocar contra o celular, a internet ou as redes (seus lados positivos também são muitos), assim como não quero defender a cultura de tornar o descanso “produtivo”. Ainda assim acho interessante lembrar que as sementes do processo artístico são plantadas muito antes de ele começar de fato;  é preciso atenção, e muitas vezes paciência, para, se não reconhecê-las e valorizá-las, ao menos vivê-las. 


O tempo da vida, do trabalho, do processo é outro. É preciso tempo, presença; são necessárias voltas, testes, devaneios. Partilha e confiança genuínas, como Patti, que lê o manuscrito de Sam, quando ele não consegue mais fisicamente escrever, e faz as alterações que o amigo orienta ou como a minha amiga, que (a princípio) de fotógrafa não tem nada e registra uma performance espontânea minha enquanto me conta sobre sua nova casa na China.


O Ano do Macaco (Year of the Monkey), de Patti Smith

Tradução: Camila von Holdefer

Capa: Fabio Uehara

Gênero: Memórias

Páginas: 168

Onde comprar: Editora Companhia das Letras - R$ 59,90


51 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page